Uma comemoração é sempre um bom pretexto para se fazer uma reflexão sobre o que se comemora ou do sentido da comemoração. 450 anos são um marco na existência de uma cidade, um número cheio. Quando Salvador completou 437 anos, escrevi um ensaio intitulado “Salvador: província e metrópole”; àquela época o país começava a desfazer-se do autoritarismo militar que o havia dominado por pouco mais de 20 anos, desde, portanto, o fatídico 1964 até 1986. O particular da abertura política, que possibilitaria a construção contínua da democracia, era o sentimento de que a cidade poderia ser devolvida aos seus habitantes, se é que alguma vez na história ela realmente os pertenceu. Aquele era um momento em que parcelas significativas da população manifestavam-se no sentido de seus interesses mais específicos, mas também cuidavam de reivindicar objetivos mais gerais, mais universais.
Aos 450 anos Salvador se constitui em uma metrópole moderna, nestes últimos anos, superando certas dificuldades que lhe eram tão comuns, a exemplo de sua própria manutenção básica: limpeza pública, saneamento. Iluminação, pavimentação de ruas, manutenção de praças e jardins, preservação do patrimônio público etc., em suma mantê-la como um condomínio bem administrado, provendo a seus habitantes os serviços urbanos básicos; em outros termos, fazendo a coisa mínima que deveria ser feita.
Salvador, provinciana não era apenas a cidade de intimidades de habitantes com seus lugares, a vivência particular desses lugares e pessoas que se conheciam pela proximidade da vizinhança, do bairrismo, o que levava à solidariedade e à intriga. O provincianismo estava, sobretudo, na legitimação institucionalizada da apropriação do público pelo privado, na dominação do campo político como negócio de família e de compadrio político; do exercer a vontade gerencial a partir de interesses particulares, tal como costumavam ser as formas de proceder de políticos em todas as esferas e instâncias do poder público, desde o rapa, na perseguição de ambulantes, aos vereadores, prefeitos, deputados e aos próprios governadores, nos acordos de interesses pessoais, grupais e partidários.
O poder, exercido em nome de uma “autoridade natural” derivada da posição funcional que, por exemplo, dava ao policial, civil ou militar, a garantia de impunidade quando violava os mais elementares direitos humanos dos cidadãos em agressões fúteis, mas também conferia a mesma legitimidade à impunidade em relação a violações contra interesses públicos de parte dos políticos, ou melhor, dos mandatários de cada momento.
O provincianismo se definia no privilégio do interesse particular sobre o universal, no pleno domínio da elite em relação à população como um todo. Este estado de coisas, de longa história, fez Salvador ser como é em sua forma urbana, mas não a moldou do mesmo jeito em sua forma cultural. São estes dois campos de reflexão que serão abordados neste ensaio sobre a Cidade de 450 anos.
DUAS CIDADES: BRASILEIRA E LUSITANA
Podemos fazer um corte – arbitrário, é verdade – na história dessa Cidade, também chamada de Bahia – que, como disse o historiador João José Reis (Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989), “tem a personalidade de um país” – tomando três momentos em sua longa duração: antes de Tomé de Souza, a cidade lusitana e a Salvador de hoje no contraponto província e metrópole.
São, como dissemos, cortes arbitrários, mas nele acreditamos encontrar alguns elementos fundamentais da baianidade, estado de espírito que faz de Salvador uma cidade sui generis, como uma nação, vista pelos de fora como um lugar hedônico, império da sensualidade, do lúdico e da preguiça: mão de todos os vícios e de todas as virtudes.
Salvador foi, desde a sua fundação, um lugar no mundo, um ponto de apoio para a globalização da modernidade. “Nós não nascemos em função do Brasil, nascemos para ser base, uma sustentação, um apoio, uma guarda, um reabastecimento, um estaleiro de todo o processo mercantilista internacional” (Cid Teixeira, entrevista 1996). Esse cosmopolitismo é, portanto, de origem, mas, antes da cidade ser fundada, a civilização pré-urbana iniciada por Caramuru já desempenhava, ainda que de modo menos estruturado, esses contatos mercantis com navegantes aventureiros, corsários, piratas, contrabandistas, como se tornaram conhecidos pelos historiadores que tiveram como referência a ilegalidade desse comércio. Era essa época da luxúria, do encontro cultural do branco com o índio, da transposição da linha do Equador como fronteira entre o pecado e o mundo livre, onde tudo era recomeço ou reencontro com o paraíso perdido.
Nesses 48 anos de povoamento do sítio indígena na entrada da barra da baía de Todos os Santos, depois de ter passado algum tempo com os indígenas do Rio Vermelho, frente ao mar aberto, Diogo Álvares Correa, o Caramuru, se estabeleceu com os índios, constituiu família desposando uma índia e amancebou-se com outras, organizou as relações comerciais com negociantes de todas as nacionalidades que se interessavam por produtos da terra. Dessa relação comercial, sexual e social começa a gente brasileira a crescer em número, aculturada aos padrões indígenas, mas sem perder os elementos da cultura européia agora descontextualizada, convertida ao imediato da realidade local.
Na entrada da barra da baía, hoje bairro da Barra, foi erguida a Vila do Pereira, começo dessa nova civilização, anterior, portanto, à civilização lusitana transladada para a nova cidade, planejada para a defesa do patrimônio colonial português: as terras brasílicas e tudo que nela havia é o resultante da atividade econômica promissora que iria fazer do Recôncavo o maior produtor de açúcar por alguns séculos; contudo, antes disso. Outras mercadorias já rendiam frutos com a exploração das matas: madeira, bichos e gentes para exportação ao longo de todo litoral, até Porto Seguro, no Extremo Sul da Bahia.
A lógica da defesa e do porto levou à escolha do sítio em que a cidade planejada foi erguida, desde as portas de São Bentos às do Carmo, no alto do promontório, diante da baía de Todos os Santos. Fortaleza inexpugnável, em tese, mas que foi invadida duas vezes pelos holandeses, apesar de seus fortes localizados em pontos estratégicos.
Defesa, comércio e devoção eram os princípios dessa cidade, capital do Atlântico Sul, como a considera o historiador Cid Teixeira. Defesa e comércio são relacionados aos objetivos econômicos da exploração colonial; devoção, por seu lado, às condições de vida de um povo exilado de sua própria terra natal, voluntária e involuntariamente, para servir à causa da metrópole. Era um tempo de medo e de necessidade de salvação; uma época em que a morte caminhava entre os homens, abatia-os sem cessar em guerras, emboscadas, mas também com doenças individualizadas ou coletivas, pois era uma gente descuidada em higiene e alimentação e sem o resguardo de uma medicina que tivesse eficácia. Sífilis, escorbuto, sarampo, tifo, varíola, cólera morbus e tantas outras doenças menos atrozes que matavam adultos e crianças. Reza e água benta, temor e devoção, eram os remédios à disposição e no fundo, bem além, estava o inferno povoado por seres demoníacos à espera dos pecadores para o sofrimento eterno.
A cidade erguida imitava a metrópole. Os que aqui estavam eram mais realistas do que o rei. Salvador de Tomé de Souza não era, portanto, a da gente brasileira dos primeiros momentos, da periferia desse núcleo urbano oficial fechado em suas portas. A civilização soteropolitana é, assim, constituída de dois ramos: o brasileiro, formado pelo encontro dos primeiros bancos sediados e os índios e seus descendentes, ao longo desses longos 48 anos que antecedem à fundação da Cidade e, logo mais, pela interpretação social, sexual e cultural com os negros trazidos da África; o segundo ramo, o lusitano, a cidade oficial e seus ocupantes, funcionários, clérigos e militares no espaço da cidade-fortaleza.
È bom citar, novamente, o historiador em sua maneira de ver esta cidade implantada, que “nasce por uma imposição internacional” e que cumpre um papel bem definido e é este que a define: “a sua filosofia de implantação era tão moderna em 1549 para os interesses, para as exigências daquela época, quanto Brasília foi para os interesses e exigências de 1960” (Cid Teixeira, entrevista 1996).
Salvador nasce à margem dos acontecimentos civilizatórios que a antecedem e vai impor-se a eles, dando origem aos conflitos e acomodações que a farão, em definitivo, uma cidade das desigualdades, porém, de convergência. Era uma cidade voltada para o futuro, para a nova colônia, para o planejamento da expansão ocidental do Império Português na modernidade; era, pois, uma parte da história de Portugal no Novo Mundo, tal como era vista pelo pregador jesuíta padre Antônio Vieira:
Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu apetite, nem mais superior a toda capacidade, que na notícia dos tempos e sucessos futuros; isto é que oferece Portugal à Europa e ao Mundo esta nova e nunca ouvida história. As outras histórias contam as cousas passadas; esta promete dizer as que estão por vir; as outras trazem à memória aqueles sucessos públicos que viu o Mundo; esta intenta manifestar ao Mundo aqueles segredos ocultos e escuríssimos a que não chega penetrar o entendimento... (Antônio Vieira)
Salvador era, de algum modo, o futuro de Portugal e, por isso, não podia deixar de ser essencialmente portuguesa e a fazer aqui nos Trópicos uma simulação da corte, da fidalguia, uma cópia da metrópole na arquitetura e nas pompas, nos ritos sociais e religiosos.
Aos 450 anos Salvador se constitui em uma metrópole moderna, nestes últimos anos, superando certas dificuldades que lhe eram tão comuns, a exemplo de sua própria manutenção básica: limpeza pública, saneamento. Iluminação, pavimentação de ruas, manutenção de praças e jardins, preservação do patrimônio público etc., em suma mantê-la como um condomínio bem administrado, provendo a seus habitantes os serviços urbanos básicos; em outros termos, fazendo a coisa mínima que deveria ser feita.
Salvador, provinciana não era apenas a cidade de intimidades de habitantes com seus lugares, a vivência particular desses lugares e pessoas que se conheciam pela proximidade da vizinhança, do bairrismo, o que levava à solidariedade e à intriga. O provincianismo estava, sobretudo, na legitimação institucionalizada da apropriação do público pelo privado, na dominação do campo político como negócio de família e de compadrio político; do exercer a vontade gerencial a partir de interesses particulares, tal como costumavam ser as formas de proceder de políticos em todas as esferas e instâncias do poder público, desde o rapa, na perseguição de ambulantes, aos vereadores, prefeitos, deputados e aos próprios governadores, nos acordos de interesses pessoais, grupais e partidários.
O poder, exercido em nome de uma “autoridade natural” derivada da posição funcional que, por exemplo, dava ao policial, civil ou militar, a garantia de impunidade quando violava os mais elementares direitos humanos dos cidadãos em agressões fúteis, mas também conferia a mesma legitimidade à impunidade em relação a violações contra interesses públicos de parte dos políticos, ou melhor, dos mandatários de cada momento.
O provincianismo se definia no privilégio do interesse particular sobre o universal, no pleno domínio da elite em relação à população como um todo. Este estado de coisas, de longa história, fez Salvador ser como é em sua forma urbana, mas não a moldou do mesmo jeito em sua forma cultural. São estes dois campos de reflexão que serão abordados neste ensaio sobre a Cidade de 450 anos.
DUAS CIDADES: BRASILEIRA E LUSITANA
Podemos fazer um corte – arbitrário, é verdade – na história dessa Cidade, também chamada de Bahia – que, como disse o historiador João José Reis (Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989), “tem a personalidade de um país” – tomando três momentos em sua longa duração: antes de Tomé de Souza, a cidade lusitana e a Salvador de hoje no contraponto província e metrópole.
São, como dissemos, cortes arbitrários, mas nele acreditamos encontrar alguns elementos fundamentais da baianidade, estado de espírito que faz de Salvador uma cidade sui generis, como uma nação, vista pelos de fora como um lugar hedônico, império da sensualidade, do lúdico e da preguiça: mão de todos os vícios e de todas as virtudes.
Salvador foi, desde a sua fundação, um lugar no mundo, um ponto de apoio para a globalização da modernidade. “Nós não nascemos em função do Brasil, nascemos para ser base, uma sustentação, um apoio, uma guarda, um reabastecimento, um estaleiro de todo o processo mercantilista internacional” (Cid Teixeira, entrevista 1996). Esse cosmopolitismo é, portanto, de origem, mas, antes da cidade ser fundada, a civilização pré-urbana iniciada por Caramuru já desempenhava, ainda que de modo menos estruturado, esses contatos mercantis com navegantes aventureiros, corsários, piratas, contrabandistas, como se tornaram conhecidos pelos historiadores que tiveram como referência a ilegalidade desse comércio. Era essa época da luxúria, do encontro cultural do branco com o índio, da transposição da linha do Equador como fronteira entre o pecado e o mundo livre, onde tudo era recomeço ou reencontro com o paraíso perdido.
Nesses 48 anos de povoamento do sítio indígena na entrada da barra da baía de Todos os Santos, depois de ter passado algum tempo com os indígenas do Rio Vermelho, frente ao mar aberto, Diogo Álvares Correa, o Caramuru, se estabeleceu com os índios, constituiu família desposando uma índia e amancebou-se com outras, organizou as relações comerciais com negociantes de todas as nacionalidades que se interessavam por produtos da terra. Dessa relação comercial, sexual e social começa a gente brasileira a crescer em número, aculturada aos padrões indígenas, mas sem perder os elementos da cultura européia agora descontextualizada, convertida ao imediato da realidade local.
Na entrada da barra da baía, hoje bairro da Barra, foi erguida a Vila do Pereira, começo dessa nova civilização, anterior, portanto, à civilização lusitana transladada para a nova cidade, planejada para a defesa do patrimônio colonial português: as terras brasílicas e tudo que nela havia é o resultante da atividade econômica promissora que iria fazer do Recôncavo o maior produtor de açúcar por alguns séculos; contudo, antes disso. Outras mercadorias já rendiam frutos com a exploração das matas: madeira, bichos e gentes para exportação ao longo de todo litoral, até Porto Seguro, no Extremo Sul da Bahia.
A lógica da defesa e do porto levou à escolha do sítio em que a cidade planejada foi erguida, desde as portas de São Bentos às do Carmo, no alto do promontório, diante da baía de Todos os Santos. Fortaleza inexpugnável, em tese, mas que foi invadida duas vezes pelos holandeses, apesar de seus fortes localizados em pontos estratégicos.
Defesa, comércio e devoção eram os princípios dessa cidade, capital do Atlântico Sul, como a considera o historiador Cid Teixeira. Defesa e comércio são relacionados aos objetivos econômicos da exploração colonial; devoção, por seu lado, às condições de vida de um povo exilado de sua própria terra natal, voluntária e involuntariamente, para servir à causa da metrópole. Era um tempo de medo e de necessidade de salvação; uma época em que a morte caminhava entre os homens, abatia-os sem cessar em guerras, emboscadas, mas também com doenças individualizadas ou coletivas, pois era uma gente descuidada em higiene e alimentação e sem o resguardo de uma medicina que tivesse eficácia. Sífilis, escorbuto, sarampo, tifo, varíola, cólera morbus e tantas outras doenças menos atrozes que matavam adultos e crianças. Reza e água benta, temor e devoção, eram os remédios à disposição e no fundo, bem além, estava o inferno povoado por seres demoníacos à espera dos pecadores para o sofrimento eterno.
A cidade erguida imitava a metrópole. Os que aqui estavam eram mais realistas do que o rei. Salvador de Tomé de Souza não era, portanto, a da gente brasileira dos primeiros momentos, da periferia desse núcleo urbano oficial fechado em suas portas. A civilização soteropolitana é, assim, constituída de dois ramos: o brasileiro, formado pelo encontro dos primeiros bancos sediados e os índios e seus descendentes, ao longo desses longos 48 anos que antecedem à fundação da Cidade e, logo mais, pela interpretação social, sexual e cultural com os negros trazidos da África; o segundo ramo, o lusitano, a cidade oficial e seus ocupantes, funcionários, clérigos e militares no espaço da cidade-fortaleza.
È bom citar, novamente, o historiador em sua maneira de ver esta cidade implantada, que “nasce por uma imposição internacional” e que cumpre um papel bem definido e é este que a define: “a sua filosofia de implantação era tão moderna em 1549 para os interesses, para as exigências daquela época, quanto Brasília foi para os interesses e exigências de 1960” (Cid Teixeira, entrevista 1996).
Salvador nasce à margem dos acontecimentos civilizatórios que a antecedem e vai impor-se a eles, dando origem aos conflitos e acomodações que a farão, em definitivo, uma cidade das desigualdades, porém, de convergência. Era uma cidade voltada para o futuro, para a nova colônia, para o planejamento da expansão ocidental do Império Português na modernidade; era, pois, uma parte da história de Portugal no Novo Mundo, tal como era vista pelo pregador jesuíta padre Antônio Vieira:
Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu apetite, nem mais superior a toda capacidade, que na notícia dos tempos e sucessos futuros; isto é que oferece Portugal à Europa e ao Mundo esta nova e nunca ouvida história. As outras histórias contam as cousas passadas; esta promete dizer as que estão por vir; as outras trazem à memória aqueles sucessos públicos que viu o Mundo; esta intenta manifestar ao Mundo aqueles segredos ocultos e escuríssimos a que não chega penetrar o entendimento... (Antônio Vieira)
Salvador era, de algum modo, o futuro de Portugal e, por isso, não podia deixar de ser essencialmente portuguesa e a fazer aqui nos Trópicos uma simulação da corte, da fidalguia, uma cópia da metrópole na arquitetura e nas pompas, nos ritos sociais e religiosos.
REBELDE E ESPERANÇOSA
A cidade do futuro é também a cidade presente, que se faz cotidiana com a matéria do passado: essa é a razão da densidade cultural que impregna Salvador e a faz significativa, mesmo quando esse significado não é decifrado e se transforma em mistério. Não se está em Salvador como em outro lugar, nela as pessoas estão sempre esperando que algo aconteça, e isto talvez seja a promessa de dizer “as cousas que estão por vir”. Um encontro inusitado, alguma coisa que dê uma reviravolta na vida, ou, em última instância, a salvação.
Salvador vai ser uma civilização “do reino” por séculos, embora não tão pura ou tão simulada como no século XVI, até o século XIX, na tumultuada década de 20, cujo marco foi a Independência comemorada em dois de julho de 1823, depois de uma longa e sangrenta guerra. Libertada politicamente de Portugal, a Bahia, o último reduto português, era dominada por portugueses no pequeno e grande comércio, na administração pública, nos principais negócios e empreendimentos. A Independência não mudou a vida do povo brasileiro e isso gerou descontentamento e revolta, levando hordas populares a caçarem e matarem “marotos”, apelido dado aos portugueses, por motivos os mais fúteis. Era a cidade desesperada, vetada à visão da promessa de futuro, estagnada socialmente numa realidade intolerável.
Salvador vai ser a cidade da esperança, não mais passivamente aguardando o acontecer, mas gerando revoltas como as do passado, desde a Conjuração dos Alfaiates, em 1798, em que prisioneiros foram enforcados e decapitados, em seguida expostas as partes amputadas de seus corpos nas ruas centrais da Cidade até o apodrecimento total de suas carnes na Praça da Piedade e ruas adjacentes, uma das quais se chama Rua da Forca. Veio a Rebelião dos Malês, em 1835; a tentativa de Independência de 1837, a Sabinada; conflitos e castigos. É a cidade à procura do futuro, querendo antecipá-lo e torná-lo contemporâneo dos desejos de seu povo.
Ao completar 450 anos, a cidade do Salvador se mostra a uma grande parte de seus habitantes como um lugar difícil, feio e até mesmo cruel. Uma outra face, entretanto, a que se olha no espelho, é simplesmente narcísica, ou, de modo mais apropriado, "é de Oxum", com toda a vaidade do orixá.
Essa cidade de múltiplas identidades se projeta nacional e internacionalmente, como a “terra da felicidade”, estereótipo criado a partir de uma música de Ary Barroso, mas também como da sensualidade, da faceirice, “da morena mais frajola da Bahia” etc., de tantas outras letras de música. Uma Salvador mesquinha, feia e dura em relação a como vive uma parcela muito grande de sua população, ocupando assentamentos urbanos arranjados pelo esforço coletivo de ocupar terras ociosas e nelas erguerem bairros inteiros, em pouquíssimo tempo, antes que a repressão institucional se desse. Essas invasões são, inclusive, as novas denominações da urbanização da pobreza que antes eram chamadas de favela, Agora, a pobreza é vista como algo que contraria os aspectos legais da ocupação da terra e é, assim, primeiramente qualificada por este aspecto.
Se fazemos a pergunta, tal como fez Philip Johnson (A humanização do meio ambiente. São Paulo: Cultrix, 1972), “porque mantemos feias e desumanas as nossas cidades”?, a resposta certamente não estará em nenhum desvio comportamental nem numa tendência à perversão, mas tão somente no modo de produção capitalista, particularmente na sua expressão brasileira e baiana de fazer a cidade no seu dia a dia.
A bela cidade do Salvador, uma das cidades mais carismáticas do país, é também uma das mais cruéis, pelo menos para um grande número de moradores que sofrem as mais duras privações e que se submetem a terríveis situações cotidianas. Não se trata aqui de procurar desmascarar a cidade bonita e feiticeira, exótica para os turistas e, de certa forma, até mesmo para os que aqui moram, dada a sua diversidade social e cultural, mas de fazer uma reflexão sobre o modo de ser de um povo que está em Salvador ou que a escolheu como o seu lugar de moradia para aqui realizar a sua vida, as coisas que animam a existência.
Para levar a efeito essa reflexão tomamos a sociabilidade soteropolitana com vistas a compreender como vive, cotidianamente, o povo da cidade, usando aí o conceito de povo muito próximo daquele Michelet, assim como a observação dos que vivem numa cidade, tal como ele recomenda:
Examinai bem essas turbas espirituosas e corrompidas de nossas grandes cidades, que tanto ocupam o observador, escutai o seu linguajar, seus gracejos não raro felizes, e descobrireis uma coisa que ninguém ainda notou, isto é, que essas pessoas, às vezes analfabetas, não deixam de ser, a sua maneira, espíritos bastante cultivados. As pessoas que vivem juntas, tocando-se sempre, desenvolvem-se necessariamente ao simples contato, como que pelo efeito do calor natural. Elas se propiciam uma educação, má, se se quiser, mas educação. Só a visão de uma grande cidade, onde sem nada querer aprender alguém se instrui a todo instante, onde para se conhecer mil coisas novas basta caminhar na rua de olhos bem abertos, essa visão, essa cidade, sabei, é uma escola. Os que nela vivem não vivem de forma alguma uma existência instintiva e natural; são homens cultos, que bem ou mal observam e bem ou mal refletem. Acho-os frequentemente muito sutis, e de uma sutileza perversa. Os efeitos de uma cultura refinada são neles bem visíveis (Jules Michelet. O povo. São Paulo: Martins Fontes, 1988)
Essa perspectiva de Michelet implica também numa metodologia muito especial de percepção da cultura do povo ou, se quisermos, da cultura popular, o que leva a outro tipo de dificuldade conceitual. No entanto, a direção é essa, ver e ouvir o povo em sua faina cotidiana, numa diversidade e multiplicidade de interações sociais, em que cortes verticais se sucedem, mas que são cada vez menos intensos, pois as relações entre diferentes estratos diminuem aceleradamente na medida em que as "classes sociais" tornam-se mais fechadas em seus compartimentos, que já não se interdependem tanto, a exemplo de quando se precisava do trabalhador do povo como criado doméstico, como lavadeira, jardineiro, motorista etc, e até mesmo a figura do agregado pobre, o literalmente "criado" pela família rica.
Os distanciamentos sociais aumentam, em que pese o fato de um maior compartilhamento de espaços públicos (ruas, praças, avenidas e mercados), mas, mesmo assim, pode-se observar o quanto eles propiciam espaços próprios para evitar contatos mais estreitos e constrangedores. Os shoppings centers são estratificados em seus diversos lugares, de modo a selecionar o público a partir de interesses bem definidos, No pavimento térreo, por exemplo, estão as grandes lojas de departamento, agências de bancos e alguns serviços indistintos de que se utilizam todos. São estes espaços populares num conjunto que oferecem uma qualidade de recepção elevada e que se apresenta para um povo com um padrão de conforto que esse povo jamais poderia desfrutar por seus próprios meios; contudo, os pavimentos superiores, constituídos de lojas e boutiques de artigos sofisticados, cinemas e praças de alimentação, vão filtrando gente, separando o povão dos estratos médios e deixando esses lugares para os efetivamente bem aquinhoados na vida. Parece ser uma separação natural, que a própria pessoa faz ou sente ao medir quais são as suas possibilidades de ultrapassar as sutis barreiras dos espaços, dos preços, dos estilos, do modo de ser de cada lugar.
Cada vez mais os lugares são socialmente marcados para caber a diversidade dos tipos sociais, mesmo quando eles adquirem a característica de consumidores. Aí, mais do que nunca, estão divididos os bem sucedidos e os falhos, para usar aqui um conceito de Bauman, ao considerar o ideal de pureza social, que se expressa na pureza da raça e na pureza de classe:
No mundo pós-moderno de estilos e padrões de vida livremente concorrentes, há ainda um severo teste de pureza que se requer seja transposto por todo aquele que solicite ser ali admitido: tem de mostrar-se capaz de ser seduzido pela infinita possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça interminável de cada vez mais intensas sensações e cada vez mais inebriante experiência. Nem todos podem passar nessa prova. Aqueles que não podem são a "sujeira" da pureza pós-moderna(Zygmunt Bauman. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998).
Essa separação social do “joio do trigo” é feita por uma série de mecanismos e processos que alimentam o racismo e outras formas de discriminação, desde as tradicionais e emblemáticas separações de elevadores sociais e de serviços, pelos quais a distinção já se faz entre moradores, visitantes e serviçais de variada natureza, até os estilos excludentes que personalizam lugares e que requerem, com isso, identidades que nem todos podem portar ou assumir.
Assim, a cidade de todos é ao mesmo tempo a cidade de cada um, e isso dentro das possibilidades mais concretas de consumo. Mesmo no Carnaval, muito equivocadamente considerado como espaço e momento democráticos, a visibilidade dos divisores sociais é tão nítida que só um espírito conturbado pela festa deixa de enxergar essas diferenças e os mecanismos e processos de discriminação e até mesmo de exclusão extrema, como no caso das cordas que cercam e protegem os blocos organizados do contato mais direto com o entorno social.
A cidade da separação é também a cidade dos cercos próprios, dos limites impostos pelos conflitos e tensões, especialmente no que concerne à segurança pessoal. A cidade de protetores eletrônicos, de seguranças e grades, e estas até mesmo para impedir que pessoas ao relento possam proteger-se nos recuos de prédios e marquises que oferecem anteparo contra a chuva e contra o frio. Grades descem à noite nos prédios comerciais do centro para fechar estes espaços e a imagem que se tem é a da agressiva cidade gradeada.
A cidade não só discrimina, mas exclui agressivamente, sacrificando, inclusive, a estética da arquitetura em nome dessa pureza que chega mesmo ao seu sentido mais banal de ver no outro o lixo humano em suas portas.
Salvador é, desde a sua origem, a cidade das desigualdades. “Triste Bahia! Ó quão dessemelhante ...” (Gregório de Matos. À cidade da Bahia) Hoje as desseme1hanças se expressam com grande nitidez nos pólos opostos da riqueza opulenta e da pobreza miserável; da cidade bonita e rica em espaços públicos bem equipados e da cidade feia, cuja urbanização se parece com a descrição feita por Fanon sobre a situação extrema da colonização, tal como o Brasil, e a Bahia em particular, foram no passado. O contraste entre o colonizador e o colonizado. Não é diferente a Salvador de hoje daquelas cidades africanas em que o confronto entre as desigualdades sociais constroem cidades também desiguais:
A cidade do colono é uma cidade saciada, indolente, cujo ventre está permanentemente repleto de boas coisas. A cidade do colono é uma cidade de brancos, de estrangeiros. A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade negra, a medina (cidade árabe ao lado da qual se erguem edificações para europeus), a reserva, é um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados. Aí se nasce não importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de que. .É um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade acocorada, uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade de negros, uma cidade de árabes (Frantz Fanon. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979).
A comparação é enfática, mas não é menos verdadeira. A Salvador do “miolo”, onde estão os conjuntos habitacionais que formam as Cajazeiras; a do Subúrbio Ferroviário, onde estão desde pequenas comunidades tradicionais até as grandes invasões mais recentes (Bate Coração, Constituinte, Fazenda Coutos e tantas outras), mas também onde outrora milhares de pessoas viviam em palafitas sobre mangue e mar, num dos bairros mais famosos de Salvador, “Alagados”. Outros espaços que concentram milhares de pessoas: Liberdade, Mata Escura, Fazenda Grande, Sussuarana, Beiru (hoje Tancredo Neves), Malvinas (hoje Bairro da Paz) etc., são exemplos de lugares “colonizados” na cidade do Salvador.
URBANIZADA E DISCRIMINADORA
A sociedade contemporânea é pródiga em ler e traduzir as condições sociais através de números correlacionados em tabelas e gráficos, em indicadores de situações de vida. Este procedimento sintético camufla, e por vezes anula, a existência dos atores sociais em seus jogos cênicos, nos quais os destinos pessoais estão alinhados ao esforço cotidiano de toda uma coletividade, seja ela expressa no conjunto da cidade, seja na configuração de paisagens menores, bairros ou mesmo ruas.
A cidade do futuro é também a cidade presente, que se faz cotidiana com a matéria do passado: essa é a razão da densidade cultural que impregna Salvador e a faz significativa, mesmo quando esse significado não é decifrado e se transforma em mistério. Não se está em Salvador como em outro lugar, nela as pessoas estão sempre esperando que algo aconteça, e isto talvez seja a promessa de dizer “as cousas que estão por vir”. Um encontro inusitado, alguma coisa que dê uma reviravolta na vida, ou, em última instância, a salvação.
Salvador vai ser uma civilização “do reino” por séculos, embora não tão pura ou tão simulada como no século XVI, até o século XIX, na tumultuada década de 20, cujo marco foi a Independência comemorada em dois de julho de 1823, depois de uma longa e sangrenta guerra. Libertada politicamente de Portugal, a Bahia, o último reduto português, era dominada por portugueses no pequeno e grande comércio, na administração pública, nos principais negócios e empreendimentos. A Independência não mudou a vida do povo brasileiro e isso gerou descontentamento e revolta, levando hordas populares a caçarem e matarem “marotos”, apelido dado aos portugueses, por motivos os mais fúteis. Era a cidade desesperada, vetada à visão da promessa de futuro, estagnada socialmente numa realidade intolerável.
Salvador vai ser a cidade da esperança, não mais passivamente aguardando o acontecer, mas gerando revoltas como as do passado, desde a Conjuração dos Alfaiates, em 1798, em que prisioneiros foram enforcados e decapitados, em seguida expostas as partes amputadas de seus corpos nas ruas centrais da Cidade até o apodrecimento total de suas carnes na Praça da Piedade e ruas adjacentes, uma das quais se chama Rua da Forca. Veio a Rebelião dos Malês, em 1835; a tentativa de Independência de 1837, a Sabinada; conflitos e castigos. É a cidade à procura do futuro, querendo antecipá-lo e torná-lo contemporâneo dos desejos de seu povo.
Ao completar 450 anos, a cidade do Salvador se mostra a uma grande parte de seus habitantes como um lugar difícil, feio e até mesmo cruel. Uma outra face, entretanto, a que se olha no espelho, é simplesmente narcísica, ou, de modo mais apropriado, "é de Oxum", com toda a vaidade do orixá.
Essa cidade de múltiplas identidades se projeta nacional e internacionalmente, como a “terra da felicidade”, estereótipo criado a partir de uma música de Ary Barroso, mas também como da sensualidade, da faceirice, “da morena mais frajola da Bahia” etc., de tantas outras letras de música. Uma Salvador mesquinha, feia e dura em relação a como vive uma parcela muito grande de sua população, ocupando assentamentos urbanos arranjados pelo esforço coletivo de ocupar terras ociosas e nelas erguerem bairros inteiros, em pouquíssimo tempo, antes que a repressão institucional se desse. Essas invasões são, inclusive, as novas denominações da urbanização da pobreza que antes eram chamadas de favela, Agora, a pobreza é vista como algo que contraria os aspectos legais da ocupação da terra e é, assim, primeiramente qualificada por este aspecto.
Se fazemos a pergunta, tal como fez Philip Johnson (A humanização do meio ambiente. São Paulo: Cultrix, 1972), “porque mantemos feias e desumanas as nossas cidades”?, a resposta certamente não estará em nenhum desvio comportamental nem numa tendência à perversão, mas tão somente no modo de produção capitalista, particularmente na sua expressão brasileira e baiana de fazer a cidade no seu dia a dia.
A bela cidade do Salvador, uma das cidades mais carismáticas do país, é também uma das mais cruéis, pelo menos para um grande número de moradores que sofrem as mais duras privações e que se submetem a terríveis situações cotidianas. Não se trata aqui de procurar desmascarar a cidade bonita e feiticeira, exótica para os turistas e, de certa forma, até mesmo para os que aqui moram, dada a sua diversidade social e cultural, mas de fazer uma reflexão sobre o modo de ser de um povo que está em Salvador ou que a escolheu como o seu lugar de moradia para aqui realizar a sua vida, as coisas que animam a existência.
Para levar a efeito essa reflexão tomamos a sociabilidade soteropolitana com vistas a compreender como vive, cotidianamente, o povo da cidade, usando aí o conceito de povo muito próximo daquele Michelet, assim como a observação dos que vivem numa cidade, tal como ele recomenda:
Examinai bem essas turbas espirituosas e corrompidas de nossas grandes cidades, que tanto ocupam o observador, escutai o seu linguajar, seus gracejos não raro felizes, e descobrireis uma coisa que ninguém ainda notou, isto é, que essas pessoas, às vezes analfabetas, não deixam de ser, a sua maneira, espíritos bastante cultivados. As pessoas que vivem juntas, tocando-se sempre, desenvolvem-se necessariamente ao simples contato, como que pelo efeito do calor natural. Elas se propiciam uma educação, má, se se quiser, mas educação. Só a visão de uma grande cidade, onde sem nada querer aprender alguém se instrui a todo instante, onde para se conhecer mil coisas novas basta caminhar na rua de olhos bem abertos, essa visão, essa cidade, sabei, é uma escola. Os que nela vivem não vivem de forma alguma uma existência instintiva e natural; são homens cultos, que bem ou mal observam e bem ou mal refletem. Acho-os frequentemente muito sutis, e de uma sutileza perversa. Os efeitos de uma cultura refinada são neles bem visíveis (Jules Michelet. O povo. São Paulo: Martins Fontes, 1988)
Essa perspectiva de Michelet implica também numa metodologia muito especial de percepção da cultura do povo ou, se quisermos, da cultura popular, o que leva a outro tipo de dificuldade conceitual. No entanto, a direção é essa, ver e ouvir o povo em sua faina cotidiana, numa diversidade e multiplicidade de interações sociais, em que cortes verticais se sucedem, mas que são cada vez menos intensos, pois as relações entre diferentes estratos diminuem aceleradamente na medida em que as "classes sociais" tornam-se mais fechadas em seus compartimentos, que já não se interdependem tanto, a exemplo de quando se precisava do trabalhador do povo como criado doméstico, como lavadeira, jardineiro, motorista etc, e até mesmo a figura do agregado pobre, o literalmente "criado" pela família rica.
Os distanciamentos sociais aumentam, em que pese o fato de um maior compartilhamento de espaços públicos (ruas, praças, avenidas e mercados), mas, mesmo assim, pode-se observar o quanto eles propiciam espaços próprios para evitar contatos mais estreitos e constrangedores. Os shoppings centers são estratificados em seus diversos lugares, de modo a selecionar o público a partir de interesses bem definidos, No pavimento térreo, por exemplo, estão as grandes lojas de departamento, agências de bancos e alguns serviços indistintos de que se utilizam todos. São estes espaços populares num conjunto que oferecem uma qualidade de recepção elevada e que se apresenta para um povo com um padrão de conforto que esse povo jamais poderia desfrutar por seus próprios meios; contudo, os pavimentos superiores, constituídos de lojas e boutiques de artigos sofisticados, cinemas e praças de alimentação, vão filtrando gente, separando o povão dos estratos médios e deixando esses lugares para os efetivamente bem aquinhoados na vida. Parece ser uma separação natural, que a própria pessoa faz ou sente ao medir quais são as suas possibilidades de ultrapassar as sutis barreiras dos espaços, dos preços, dos estilos, do modo de ser de cada lugar.
Cada vez mais os lugares são socialmente marcados para caber a diversidade dos tipos sociais, mesmo quando eles adquirem a característica de consumidores. Aí, mais do que nunca, estão divididos os bem sucedidos e os falhos, para usar aqui um conceito de Bauman, ao considerar o ideal de pureza social, que se expressa na pureza da raça e na pureza de classe:
No mundo pós-moderno de estilos e padrões de vida livremente concorrentes, há ainda um severo teste de pureza que se requer seja transposto por todo aquele que solicite ser ali admitido: tem de mostrar-se capaz de ser seduzido pela infinita possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça interminável de cada vez mais intensas sensações e cada vez mais inebriante experiência. Nem todos podem passar nessa prova. Aqueles que não podem são a "sujeira" da pureza pós-moderna(Zygmunt Bauman. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998).
Essa separação social do “joio do trigo” é feita por uma série de mecanismos e processos que alimentam o racismo e outras formas de discriminação, desde as tradicionais e emblemáticas separações de elevadores sociais e de serviços, pelos quais a distinção já se faz entre moradores, visitantes e serviçais de variada natureza, até os estilos excludentes que personalizam lugares e que requerem, com isso, identidades que nem todos podem portar ou assumir.
Assim, a cidade de todos é ao mesmo tempo a cidade de cada um, e isso dentro das possibilidades mais concretas de consumo. Mesmo no Carnaval, muito equivocadamente considerado como espaço e momento democráticos, a visibilidade dos divisores sociais é tão nítida que só um espírito conturbado pela festa deixa de enxergar essas diferenças e os mecanismos e processos de discriminação e até mesmo de exclusão extrema, como no caso das cordas que cercam e protegem os blocos organizados do contato mais direto com o entorno social.
A cidade da separação é também a cidade dos cercos próprios, dos limites impostos pelos conflitos e tensões, especialmente no que concerne à segurança pessoal. A cidade de protetores eletrônicos, de seguranças e grades, e estas até mesmo para impedir que pessoas ao relento possam proteger-se nos recuos de prédios e marquises que oferecem anteparo contra a chuva e contra o frio. Grades descem à noite nos prédios comerciais do centro para fechar estes espaços e a imagem que se tem é a da agressiva cidade gradeada.
A cidade não só discrimina, mas exclui agressivamente, sacrificando, inclusive, a estética da arquitetura em nome dessa pureza que chega mesmo ao seu sentido mais banal de ver no outro o lixo humano em suas portas.
Salvador é, desde a sua origem, a cidade das desigualdades. “Triste Bahia! Ó quão dessemelhante ...” (Gregório de Matos. À cidade da Bahia) Hoje as desseme1hanças se expressam com grande nitidez nos pólos opostos da riqueza opulenta e da pobreza miserável; da cidade bonita e rica em espaços públicos bem equipados e da cidade feia, cuja urbanização se parece com a descrição feita por Fanon sobre a situação extrema da colonização, tal como o Brasil, e a Bahia em particular, foram no passado. O contraste entre o colonizador e o colonizado. Não é diferente a Salvador de hoje daquelas cidades africanas em que o confronto entre as desigualdades sociais constroem cidades também desiguais:
A cidade do colono é uma cidade saciada, indolente, cujo ventre está permanentemente repleto de boas coisas. A cidade do colono é uma cidade de brancos, de estrangeiros. A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade negra, a medina (cidade árabe ao lado da qual se erguem edificações para europeus), a reserva, é um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados. Aí se nasce não importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de que. .É um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade acocorada, uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade de negros, uma cidade de árabes (Frantz Fanon. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979).
A comparação é enfática, mas não é menos verdadeira. A Salvador do “miolo”, onde estão os conjuntos habitacionais que formam as Cajazeiras; a do Subúrbio Ferroviário, onde estão desde pequenas comunidades tradicionais até as grandes invasões mais recentes (Bate Coração, Constituinte, Fazenda Coutos e tantas outras), mas também onde outrora milhares de pessoas viviam em palafitas sobre mangue e mar, num dos bairros mais famosos de Salvador, “Alagados”. Outros espaços que concentram milhares de pessoas: Liberdade, Mata Escura, Fazenda Grande, Sussuarana, Beiru (hoje Tancredo Neves), Malvinas (hoje Bairro da Paz) etc., são exemplos de lugares “colonizados” na cidade do Salvador.
URBANIZADA E DISCRIMINADORA
A sociedade contemporânea é pródiga em ler e traduzir as condições sociais através de números correlacionados em tabelas e gráficos, em indicadores de situações de vida. Este procedimento sintético camufla, e por vezes anula, a existência dos atores sociais em seus jogos cênicos, nos quais os destinos pessoais estão alinhados ao esforço cotidiano de toda uma coletividade, seja ela expressa no conjunto da cidade, seja na configuração de paisagens menores, bairros ou mesmo ruas.
As práticas sociais cotidianas passam despercebidas dessa leitura e dessa tradução que desconhecem os destinos pessoais, as subjetividades, e tomam como referenciais tão somente os dados que ligam essas pessoas ao conjunto organizado do que se poderia considerar como estrutura social. Assim, os níveis de renda, medidos pelo salário mínimo, diriam das condições de vida de uma população, ou o PIB a renda per capita, a riqueza de um país, Mas não estão presentes os sentimentos, os modos de ser, os gestos e as falas, a alma e o humor, as expressões da existência.
O urbanismo, por seu lado, pode ser visto como ideologia, ou seja, concepção de época em que a cidade é tratada a partir de determinados pressupostos. Há poucos anos, ainda na década de 1980, estávamos envolvidos na racionalidade funcional das cidades preparadas para receber os impactos da industrialização projetada em termos de complexos industriais, a exemplo do Centro Industrial de Aratu ou do Pólo Petroquímico de Camaçari, no entorno metropolitano; agora, Salvador se esmera para camuflar suas mazelas e expor suas belezas, culturais e naturais para o encantamento de turistas, pois o turismo e a indústria cultural são as ênfases desse fim de século.
Na verdade, é bom que se ressalte, o planejamento sempre atuou como corretor de problemas, como solucionador de conflitos, sempre na direção de eliminar as tensões afastando os elementos opositores. Assim, os pobres que estavam no caminho da modernização foram retirados, seja através de políticas habitacionais dirigidas para a ocupação periférica e interiorizada (as Cajazeiras, por exemplo), ou deixar que as soluções de moradia viessem no jogo de forças sociais subalternas na ocupação, pela via de invasões, de solos acidentados próximos a áreas urbanizadas de bairros populares, como são os inúmeros casos de invasões no Subúrbio Ferroviário e no Miolo de Salvador.
Criado o problema, portanto, a municipalidade, ou mesmo o governo estadual, se propõe a “urbanizar a invasão”, implementando algumas obras de infra-estrutura ou atendendo à população com alguns - e quase sempre precários - serviços públicos, através de programas, como o que está em curso e que se chama eufemisticamente “Viver Melhor”. São casas pequenas, feias e frágeis, tão precárias que muitas delas se dissolveram com as últimas chuvas, outras tantas foram levadas por terrenos movediços, rachando as suas paredes e ameaçando seus moradores.
A dimensão do planejamento, contudo, desaparece. O mais grave, entretanto, é a perda de princípios que deveriam orientar o urbanismo, na apenas a partir da razão instrumental, o lado pragmático de fazer a cidade servir, cada vez melhor, aos que fazem dela suas bases produtiva e existencial, à revelia do conjunto maior da população.
O urbanismo que não incorpora os valores das lutas e conquistas sociais só pode ser visto como autoritário e discriminador. Os agentes que o praticam são os mesmos que dominam a sociedade em todas as suas dimensões: econômica, política, cultural e social. A população que não tem as condições de fazer o jogo do mercado é compelida a resolver suas necessidades de forma secundária, improvisadamente, nas mais duras condições de organização suas vidas: moradia, transporte, educação, saúde, segurança, conforto, insegurança, medo e esforços intensos para viver na cidade, para se comunicar com ela e através dela. Não é por acaso que está internalizada e automatizada nas pessoas a resposta que se dá à gentil pergunta quando pessoas se encontram: - “Como vai você”?. A resposta é peremptória – “Na luta!”. Para além de um hábito, essa expressão denota o sentido de dificuldade que as pessoas sentem no exercício cotidiano de vida.
A luta política pela democracia não é internalizada no urbanismo. Este continua pautado em critérios de funcionalidade e na dependência dos jogos dos agentes construtores da cidade legal, ou seja, os comerciantes, os industriais, os agentes imobiliários e os exploradores da industrial cultural e do turismo. Um exemplo claro é a reserva ecológica que o complexo hoteleiro tem em Ondina, por exemplo, privilégio absoluto sobre a paisagem e localização de seus equipamentos, Mas não é só essa evidência escandalosa, basta que se olhe para a orla marítima, toda ela, e se procure ver quem a ocupa; e agora o Parque Atlântico Plaza Show, montado no mais extenso e privilegiado terreno público da cidade, no recente e tradicional bairro da Boca do Rio.
Em lugar dos equipamentos comunitários da densa vizinhança e da composição estética com a praia e o mar, pesadas estruturas de shopping Center e serviços sofisticados como o Rock in Rio Café, complexo de dez salas luxuosas de cinema da Paramount, entre outros. Não são pescadores, nem pobres, nem mesmo remediados. Há muito que os pescadores foram retirados da proximidade do mar, no desmanche das invasões da orla. Desde este tempo de vigência da ideologia da modernização urbana que Salvador agride os mais pobres, afastando-os das “áreas nobres”, acomodando-os em guetos, como a recente memória das invasões do Cai Duro e do Tubo, na Pituba e Costa Azul, transferidas para o Arenoso, numa vergonhosa barganha entre Prefeitura e empresas imobiliárias.
O princípio democrático não é internalizado pelo urbanismo soteropolitano. Há sempre leis pontuais que satisfazem a ganância dos agentes imobiliários e outros que requerem usos vantajosos da cidade. O Pelourinho é outro bom exemplo, O povo foi expulso, comerciantes e empresários bem sucedidos em seus negócios foram convidados, com os incentivos de financiamento governamental os mais atraentes, a ocuparem o velho Centro Histórico, a explorarem com toda a avidez, sem nenhum respeito às tradições, aos rituais do povo, sequer à memória arquitetônica e social. Nesta área, da Praça da Sé ao Carmo, passando pelo Terreiro de Jesus, Maciel de Cima e Maciel de Baixo, Largo do Pelourinho, numa das descrições da Bahia de Jorge Amado, é que se produz a mais genuína cultura popular da Bahia; mas hoje toda essa região central está vazia dessa gente, do popular, da espontaneidade. O que há de gente do povo aí está a serviço do turismo em atividades programadas. Pode-se dizer que não se encontra nesse cenário da velha Bahia com nenhum personagem de Jorge Amado: Joões Pinguelinho, Pés-de-Vento, Vadinhos, Miguéis Arcanjos ...
Nenhuma democracia em relação ao povo em Salvador, mas o oposto, rígida hierarquização de seus espaços. Ampla aplicação das penas de exílio e exclusão. Ordenar a cidade! Desfavelizar festas de largo! Padronizar barracas! Fazer do Carnaval um grande negócio! Eis a nova onda, a ideologia administrativa deste tempo de barganha política para a manutenção absoluta do poder. Retirar ambulantes, acabar com a economia informal, impedir que os mais pobres tomem iniciativas e ocupem espaços estratégicos na cidade para o exercício de suas atividades, e tudo isso numa época de desemprego agudo, de dificuldades de sobrevivência.
Se for tomado o exemplo do carnaval vai-se poder visualizar com muita nitidez essa prática de exploração da cidade pelos agentes econômicos dominantes. A mais dura fiscalização em relação aos ambulantes e seus negócios de ocasião. A mais despudorada entrega do espaço urbano aos agentes econômicos da indústria cultural. A mais ostensiva reserva de espaço para as classes mais favorecidas usufruírem a festa com conforto, segurança e exclusividade social.
O povo e nem mesmo as categorias privilegiadas da sociedade têm acesso à administração municipal, no sentido de participação em discussões de projetos polêmicos. A cidade serve ao poder, à manutenção do poder de grupos políticos e estes a servirem aos interesses econômicos de agentes sociais dominantes. Por todas essas razões Salvador está se amesquinhando, maltratando cada vez mais seu povo sofrido, e como já não se pode mais fazer do sofrimento uma virtude, Salvador submerge na violência, no desrespeito, na hostilidade, na indiferença, na malandragem de toda ordem. Os dados estatísticos oficiais de assaltos a ônibus urbanos são contundentes: em seis meses do ano de 1999 mais de 1.100 ocorrências; neste mesmo período, 113 assassinatos, a maioria absoluta deles envolvendo jovens nos bairros populares.
Já não se tem o cidadão de Salvador, a não ser aquele que recebe o gracioso título dado pela Câmara de Vereadores. O soteropolitano, o morador da Cidade, está desgraçadamente entregue às suas possibilidades pessoais, uma vez que, se não tem condições de apropriar-se da cidade, é obrigado a viver na Cidade apropriada pelos outros e obrigado a uma humilhante submissão à ordem cotidiana de dificuldades que transforma a vida em luta, a difícil luta para ser feliz de quando em vez.
Somos herdeiros da diferença, que é a nossa origem: o branco colonizador, índios e negros escravos; destes, os índios foram condenados à extinção e a memória que temos deles é a romântica simbolização da brasilidade quando da guerra da Independência da Bahia: o caboclo. Homenagem a um povo que já não existia, senão como remanescente decadente de um genocídio programado - puro romantismo ingênuo. Os negros, sobreviventes da escravidão, em conflitos e negociações, preservaram uma herança cultural de riquíssima interpenetração cultural, mas que ressalta a tradição afro-brasileira e a toma a própria cultura da Bahia, da cidade do Salvador e do Recôncavo.
CONCLUSÃO
Esse lado irônico dessa longa história, essa luta homeopática para sobreviver e fazer aflorar os modos de ser de um povo submetido à mais extrema dominação. A cultura afro-brasileira infiltrou-se na alma de todos, mesmo daqueles que a repudiam e assim o fazem porque a reconhecem, porque ela era a própria intimidade da vida cotidiana, como bem analisou Gilberto Freyre. Essa cultura foi inconscientemente sugada com o leite da ama preta mamado pela criancinha branca; foi engolida com a comida preparada pelas negras da cozinha branca; estava nos chás que aplacavam dores e incômodos intestinais; na anestesia das dores dos seios, do parto; no acalanto, no fechar de corpos fragilizados, no afastamento de medos, mas também no medo da força dos poderes dos feiticeiros, dos pais e mães-de-santo que tanto sabiam do mundo e dos mistérios do sobrenatural. Essa cultura era transmitida como se transmite a própria vida, dos mais velhos aos mais novos, em ritos de aprendizado, de convivência, de formação existencial. Mas era também a cultura da maioria, dos negros e mulatos, predominantes na população de Salvador até os dias atuais, quase a totalidade de seu contingente demográfico.
É essa cultura a marca da Bahia. É essa cultura que alimenta a indústria cultural e que faz da Bahia um centro produtor de cultura. O reconhecimento dessa cultura é visível, pois estão os orixás a proteger o grande espaço aberto do Edifício dos Correios, no elegante bairro da Pituba; estão também sobre as águas do Dique do Tororó; são eles a própria mata e as cachoeiras do Parque São Bartolomeu; já não estão circunscritos aos terreiros de candomblé e nem estes precisam mais viver na clandestinidade ou obrigados a pedir permissão à polícia para bater os seus tambores sagrados (até 1975, os candomblés eram obrigados a pedir permissão para bater; no passado, sobretudo nas décadas de 1930 e 190, foram constantemente perseguidos, violados pela polícia. Hoje os candomblés são respeitados e prestigiados, alguns de seus pais e mães-de-santo tornaram-se personalidades ilustres, oficialmente reconhecidas e de obrigatória visita de personagens também ilustres que visitam a cidade).
Essa cultura multifacetada produziu também o fenômeno novo no quadro da religiosidade brasileira: o candomblé e a umbanda. O primeiro, com pouco mais de cem anos, a segunda, dos anos 30 deste século, e se espalham e se legitimam no Brasil, na América Latina e adentram os Estados Unidos, com a tendência de tornarem-se universais. São lugares e ambientes de socialização, de uma sociabilidade específica de múltiplas dimensões do sagrado e do profano. Desses terreiros e centros essa cultura transborda para a vida cotidiana em aspectos também específicos, como um duplo que pode viver a dimensão do cotidiano quando deixa a dimensão do espetáculo, do rito, da festa.
Porém, Salvador é também lusitana, mas sobretudo americanizada em suas práticas mais comuns: meios de comunicação, em especial o telefone; shopping centers, automação bancária, SACs (serviços de atendimento ao cidadão), clínicas e hospitais, hotéis e modos de vestir e agir também copiam o padrão norte-americano; a difusão da língua inglesa, o turismo internacional. Salvador, sem a mesma importância do passado, continua a ser um lugar no mundo, tal como diz o verso: “Europa, França e Bahia”.
Ao completar 450 Salvador é uma cidade coquete, não mais daquele coqueteria tradicional de cores e odores fortes, de músicas melancólicas, do romantismo nostálgico e trágico, mas também da alegria esfuziante, da sensualidade de seu samba de roda, das safadezas de gestos, palavras, comidas e bebidas. Não mais a cidade das sombras, de luzes pálidas, nem mesmo a da sensualidade desabusada das mulheres públicas, nem a dos boêmios. É hoje a cidade do espetáculo, dos gestos estruturados, da socialização organizada, dos pagodes, das bandas, dos blocos, dos afoxés, da Timbalada.
Cada pessoa é uma representação em si mesma desses elementos simbólicos que caracterizam Salvador, a baianidade. O ethos baiano, amparado na sedução. Salvador é para ser vista e vive se representando. É simultaneamente um lugar para si e para os outros, é um dar-se permanente, como a vaidosa Oxum, sensual e sedutora, mas enérgica e personalista. Como Iemanjá, é a grande mãe negra, a África mítica que só existe aqui, terra dos africanos da diáspora, terra de seus descendentes, África sentimental, território da ancestralidade, lugar de convívio do povo com os seus deuses e eles com o seu povo.
Salvador é tempo condensado, é lugar de encontro para o mundo e uma promessa de tolerância para o convívio das diferenças. Mais do que tudo o que se vê e que se pode tocar, Salvador é cheiro, é balbucio, é movimento sutil a modificar todas as formas que se querem rígidas. A personalidade de Salvador é fortíssima, sua cultura digere as demais culturas que aqui chegam e seu tempero predomina. Lugar de diferenças, mas a cidade a quem o futuro é promessa não superou a intolerância do racismo étnico e social do autoritarismo baiano compenetrado.
A cidade tornou-se mais universal, para si mesma e para os outros, é lugar de turismo e produtora de cultura. Vive o conflito de preservar suas tradições e torna-se mercadoria para consumidores de pouca imaginação e cuidado; e, nesse movimento, vez por outra se descaracteriza para fazer o gosto do freguês, ou dança uma mesma dança e canta uma mesma cantiga até a exaustão; ou faz movimentos bruscos e recria, trazendo suas raízes poderosas de lokos imensos, poderosa força que gera inovação e, novamente, algo novo e diferente emerge. Mas, de todas essas invenções e criações, a mais importante é a do aprimoramento do processo civilizador, o da dimensão ética das relações sociais entre as diferenças culturais, de tantas frentes abertas de luta contra o provincianismo político e cultural institucionalizados.
O princípio democrático não é internalizado pelo urbanismo soteropolitano. Há sempre leis pontuais que satisfazem a ganância dos agentes imobiliários e outros que requerem usos vantajosos da cidade. O Pelourinho é outro bom exemplo, O povo foi expulso, comerciantes e empresários bem sucedidos em seus negócios foram convidados, com os incentivos de financiamento governamental os mais atraentes, a ocuparem o velho Centro Histórico, a explorarem com toda a avidez, sem nenhum respeito às tradições, aos rituais do povo, sequer à memória arquitetônica e social. Nesta área, da Praça da Sé ao Carmo, passando pelo Terreiro de Jesus, Maciel de Cima e Maciel de Baixo, Largo do Pelourinho, numa das descrições da Bahia de Jorge Amado, é que se produz a mais genuína cultura popular da Bahia; mas hoje toda essa região central está vazia dessa gente, do popular, da espontaneidade. O que há de gente do povo aí está a serviço do turismo em atividades programadas. Pode-se dizer que não se encontra nesse cenário da velha Bahia com nenhum personagem de Jorge Amado: Joões Pinguelinho, Pés-de-Vento, Vadinhos, Miguéis Arcanjos ...
Nenhuma democracia em relação ao povo em Salvador, mas o oposto, rígida hierarquização de seus espaços. Ampla aplicação das penas de exílio e exclusão. Ordenar a cidade! Desfavelizar festas de largo! Padronizar barracas! Fazer do Carnaval um grande negócio! Eis a nova onda, a ideologia administrativa deste tempo de barganha política para a manutenção absoluta do poder. Retirar ambulantes, acabar com a economia informal, impedir que os mais pobres tomem iniciativas e ocupem espaços estratégicos na cidade para o exercício de suas atividades, e tudo isso numa época de desemprego agudo, de dificuldades de sobrevivência.
Se for tomado o exemplo do carnaval vai-se poder visualizar com muita nitidez essa prática de exploração da cidade pelos agentes econômicos dominantes. A mais dura fiscalização em relação aos ambulantes e seus negócios de ocasião. A mais despudorada entrega do espaço urbano aos agentes econômicos da indústria cultural. A mais ostensiva reserva de espaço para as classes mais favorecidas usufruírem a festa com conforto, segurança e exclusividade social.
O povo e nem mesmo as categorias privilegiadas da sociedade têm acesso à administração municipal, no sentido de participação em discussões de projetos polêmicos. A cidade serve ao poder, à manutenção do poder de grupos políticos e estes a servirem aos interesses econômicos de agentes sociais dominantes. Por todas essas razões Salvador está se amesquinhando, maltratando cada vez mais seu povo sofrido, e como já não se pode mais fazer do sofrimento uma virtude, Salvador submerge na violência, no desrespeito, na hostilidade, na indiferença, na malandragem de toda ordem. Os dados estatísticos oficiais de assaltos a ônibus urbanos são contundentes: em seis meses do ano de 1999 mais de 1.100 ocorrências; neste mesmo período, 113 assassinatos, a maioria absoluta deles envolvendo jovens nos bairros populares.
Já não se tem o cidadão de Salvador, a não ser aquele que recebe o gracioso título dado pela Câmara de Vereadores. O soteropolitano, o morador da Cidade, está desgraçadamente entregue às suas possibilidades pessoais, uma vez que, se não tem condições de apropriar-se da cidade, é obrigado a viver na Cidade apropriada pelos outros e obrigado a uma humilhante submissão à ordem cotidiana de dificuldades que transforma a vida em luta, a difícil luta para ser feliz de quando em vez.
Somos herdeiros da diferença, que é a nossa origem: o branco colonizador, índios e negros escravos; destes, os índios foram condenados à extinção e a memória que temos deles é a romântica simbolização da brasilidade quando da guerra da Independência da Bahia: o caboclo. Homenagem a um povo que já não existia, senão como remanescente decadente de um genocídio programado - puro romantismo ingênuo. Os negros, sobreviventes da escravidão, em conflitos e negociações, preservaram uma herança cultural de riquíssima interpenetração cultural, mas que ressalta a tradição afro-brasileira e a toma a própria cultura da Bahia, da cidade do Salvador e do Recôncavo.
CONCLUSÃO
Esse lado irônico dessa longa história, essa luta homeopática para sobreviver e fazer aflorar os modos de ser de um povo submetido à mais extrema dominação. A cultura afro-brasileira infiltrou-se na alma de todos, mesmo daqueles que a repudiam e assim o fazem porque a reconhecem, porque ela era a própria intimidade da vida cotidiana, como bem analisou Gilberto Freyre. Essa cultura foi inconscientemente sugada com o leite da ama preta mamado pela criancinha branca; foi engolida com a comida preparada pelas negras da cozinha branca; estava nos chás que aplacavam dores e incômodos intestinais; na anestesia das dores dos seios, do parto; no acalanto, no fechar de corpos fragilizados, no afastamento de medos, mas também no medo da força dos poderes dos feiticeiros, dos pais e mães-de-santo que tanto sabiam do mundo e dos mistérios do sobrenatural. Essa cultura era transmitida como se transmite a própria vida, dos mais velhos aos mais novos, em ritos de aprendizado, de convivência, de formação existencial. Mas era também a cultura da maioria, dos negros e mulatos, predominantes na população de Salvador até os dias atuais, quase a totalidade de seu contingente demográfico.
É essa cultura a marca da Bahia. É essa cultura que alimenta a indústria cultural e que faz da Bahia um centro produtor de cultura. O reconhecimento dessa cultura é visível, pois estão os orixás a proteger o grande espaço aberto do Edifício dos Correios, no elegante bairro da Pituba; estão também sobre as águas do Dique do Tororó; são eles a própria mata e as cachoeiras do Parque São Bartolomeu; já não estão circunscritos aos terreiros de candomblé e nem estes precisam mais viver na clandestinidade ou obrigados a pedir permissão à polícia para bater os seus tambores sagrados (até 1975, os candomblés eram obrigados a pedir permissão para bater; no passado, sobretudo nas décadas de 1930 e 190, foram constantemente perseguidos, violados pela polícia. Hoje os candomblés são respeitados e prestigiados, alguns de seus pais e mães-de-santo tornaram-se personalidades ilustres, oficialmente reconhecidas e de obrigatória visita de personagens também ilustres que visitam a cidade).
Essa cultura multifacetada produziu também o fenômeno novo no quadro da religiosidade brasileira: o candomblé e a umbanda. O primeiro, com pouco mais de cem anos, a segunda, dos anos 30 deste século, e se espalham e se legitimam no Brasil, na América Latina e adentram os Estados Unidos, com a tendência de tornarem-se universais. São lugares e ambientes de socialização, de uma sociabilidade específica de múltiplas dimensões do sagrado e do profano. Desses terreiros e centros essa cultura transborda para a vida cotidiana em aspectos também específicos, como um duplo que pode viver a dimensão do cotidiano quando deixa a dimensão do espetáculo, do rito, da festa.
Porém, Salvador é também lusitana, mas sobretudo americanizada em suas práticas mais comuns: meios de comunicação, em especial o telefone; shopping centers, automação bancária, SACs (serviços de atendimento ao cidadão), clínicas e hospitais, hotéis e modos de vestir e agir também copiam o padrão norte-americano; a difusão da língua inglesa, o turismo internacional. Salvador, sem a mesma importância do passado, continua a ser um lugar no mundo, tal como diz o verso: “Europa, França e Bahia”.
Ao completar 450 Salvador é uma cidade coquete, não mais daquele coqueteria tradicional de cores e odores fortes, de músicas melancólicas, do romantismo nostálgico e trágico, mas também da alegria esfuziante, da sensualidade de seu samba de roda, das safadezas de gestos, palavras, comidas e bebidas. Não mais a cidade das sombras, de luzes pálidas, nem mesmo a da sensualidade desabusada das mulheres públicas, nem a dos boêmios. É hoje a cidade do espetáculo, dos gestos estruturados, da socialização organizada, dos pagodes, das bandas, dos blocos, dos afoxés, da Timbalada.
Cada pessoa é uma representação em si mesma desses elementos simbólicos que caracterizam Salvador, a baianidade. O ethos baiano, amparado na sedução. Salvador é para ser vista e vive se representando. É simultaneamente um lugar para si e para os outros, é um dar-se permanente, como a vaidosa Oxum, sensual e sedutora, mas enérgica e personalista. Como Iemanjá, é a grande mãe negra, a África mítica que só existe aqui, terra dos africanos da diáspora, terra de seus descendentes, África sentimental, território da ancestralidade, lugar de convívio do povo com os seus deuses e eles com o seu povo.
Salvador é tempo condensado, é lugar de encontro para o mundo e uma promessa de tolerância para o convívio das diferenças. Mais do que tudo o que se vê e que se pode tocar, Salvador é cheiro, é balbucio, é movimento sutil a modificar todas as formas que se querem rígidas. A personalidade de Salvador é fortíssima, sua cultura digere as demais culturas que aqui chegam e seu tempero predomina. Lugar de diferenças, mas a cidade a quem o futuro é promessa não superou a intolerância do racismo étnico e social do autoritarismo baiano compenetrado.
A cidade tornou-se mais universal, para si mesma e para os outros, é lugar de turismo e produtora de cultura. Vive o conflito de preservar suas tradições e torna-se mercadoria para consumidores de pouca imaginação e cuidado; e, nesse movimento, vez por outra se descaracteriza para fazer o gosto do freguês, ou dança uma mesma dança e canta uma mesma cantiga até a exaustão; ou faz movimentos bruscos e recria, trazendo suas raízes poderosas de lokos imensos, poderosa força que gera inovação e, novamente, algo novo e diferente emerge. Mas, de todas essas invenções e criações, a mais importante é a do aprimoramento do processo civilizador, o da dimensão ética das relações sociais entre as diferenças culturais, de tantas frentes abertas de luta contra o provincianismo político e cultural institucionalizados.
A cidade do Salvador é a promessa de ser a da salvação das almas, mas precisa ser, antes disso, a cidade da existência das pessoas no curso da vida cotidiana. A cidade bonita precisa contagiar a cidade feia e desumana de tantos milhares de habitantes pobres. A cidade do Axé precisa cuidar mais de sua gente, não ser gentil apenas com quem é de fora, em rituais cerimoniosos de bem receber, enquanto aos daqui ordena – “sirva-se, você é de casa”, sem brincar de cerimônia íntima, tão delicada, tão terna, de quem se dá com gosto. Salvador é ainda promessa em seus 450 anos e a sua história é, verdadeiramente, a das “cousas que estão por vir” (por Gey Espinheira).
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