domingo, 11 de dezembro de 2011

A RETOMADA DO “PÚBLICO”


A partir da década de 1970 estivemos diante de uma “onda” avassaladora que gerou uma reestruturação produtiva que mudou radicalmente as configurações do mundo do trabalho. Diante de novos arranjos sociais e políticos, as sociedades globais passaram a conviver com a flexibilização e precarização do trabalho, colocando milhões de trabalhadores pelo mundo afora á margem dos direitos trabalhistas. O avanço do capitalismo e o incremento de tecnologias diversas na produção acelerou um novo paradigma de acumulação de capital, capaz de, contraditoriamente, através do trabalho formal e informal legar a um enorme contingente de trabalhadores a pobreza e a indignidade humana.
Por motivos que não beiram a coincidência, a China tem sido um motor da economia e da modernização tecnológica a troco de manter uma grande parcela dos seus compatriotas sob o jugo da pobreza e relações trabalhistas que vão de encontro aos direitos humanos e a concepção de mundo cunhada pelas revoluções modernas. Por que o mundo não denuncia a China? Simplesmente pelo fato que o que existe lá é a incorporação de um “espirito” capitalista exógeno e padrão nas relações econômicas em todo o mundo.
Esse “empobrecimento social do trabalho” não é um problema exclusivo da China, mas faz parte do repertório capitalista. A globalização e o êxito do neoliberalismo aprofundaram problemas sociais antes resolvidos pelo Estado, que passou a ser figura inerte, mínima, na garantia da dignidade das pessoas e de um padrão econômico tido como “razoável”, ou seja, a manutenção de um bem-estar social. O neoliberalismo provocara a liberdade dos mercados, que convergiram para o alastramento das relações frágeis de trabalho. O esfacelamento dos direitos trabalhistas coincidiu com a brutal arrecadação das empresas, mesmo em cenários de estagnação econômica.
O inicio do século XXI é especial para a América Latina. Os seus diversos governos demonstram uma convergência no que concerne barrar o neoliberalismo enquanto receituário social e econômico de gestão das sociedades. Nos últimos anos, tivemos que (re) aprender a conviver com o protagonismo dos governos em decidir os rumos da economia e de cuidar da vida das pessoas.
Em sala de aula, a partir das discussões suscitadas pela disciplina “Sociologia” no currículo do ensino básico, estamos o tempo todo a esbarrar em um novo imaginário dos nossos jovens: eles querem estudar e, de preferência, ingressar no serviço público. São seduzidos pela razão contrária das observadas no mercado de trabalho. Enquanto servidores públicos tendem a receber melhores salários, plano de carreira, estabilidade e direitos trabalhistas adquiridos . Deixamos para trás a insígnia de que o serviço público tinha vocação para a ociosidade. As classes médias também se mostram tentadas a investir em cursos preparatórios e em horas de estudos com vistas a ingressar nas fileiras do Estado.
Enfim, o que estamos aqui a observar é a retomada de uma “razão pública” propagada por uma nova agenda de bem-estar social, que não isola as tensões sociais e políticas da constituição de um novo projeto. No cotidiano das pessoas, o Estado deixou de ser um coletor de impostos e “prestador e regulador de serviços” como pensou o receituário neoliberal figurado nos Estados Unidos, União Europeia e o Fundo Monetário Internacional (FMI). A cobiça e determinação em se tornar um servidor público traduz a grandiosidade da tarefa em romper com a agenda torpe do neoliberalismo. Estamos adiantados nessa tarefa, o que explica, talvez, a posição atual do Brasil diante da crise econômica. A economia europeia está quebrada em razão do grau de adesão dos países ao neoliberalismo. Como um “museu de grandes novidades”, a solução imediata a que os governos neoliberais e o mercado estão a propor é adotar medidas que atingem diretamente milhões de trabalhadores, que pouco ou nada tem a ver com as decisões econômicas e politicas adotadas por governos ou mercados. Esta crise que assistimos não isenta o Brasil de contingências, embora o tempo social e político que estamos a passar aqui seja outro. Aqui, assim como no restante da América Latina, o neoliberalismo tem sido mais ou menos coisa do passado. Estamos a olhar e viver um novo projeto de vida, igualmente aos jovens estudantes que almejam no serviço público aquilo que o mercado de trabalho, assim como o marketing, promete apenas em palavras.

Cláudio André de Souza é cientista político e professor de sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA).

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

WARREN BUFFET DIZ: “PAREM DE MIMAR OS SUPER-RICOS”

Mega-milionário global alerta: ao não tributarem grandes fortunas, em meio à crise, governos e parlamentos estão à beira da desmoralização

Por Warren E. Buffett*, no New York Times 
Tradução: Cauê Seigner Ameni

Nossos lideres falaram de “dividir o sacrifício”. Mas me pouparam. Chequei com meus colegas mega-ricos para ver o que eles esperavam. Também sentem-se intocados.

Enquanto os pobres e a classe média lutam por nós no Afeganistão, e a maioria dos norte-americanos se esforça para fechar suas contas, nós mega-ricos continuamos a desfrutar de incentivos fiscais extraordinários. Alguns de nós, somos gestores de investimentos. Ganhamos bilhões com nosso trabalho, mas podemos classificar nossa renda como “participação nos resultados”, pagando uma pechincha de 15% de imposto. Outros, aplicam nos mercados futuros de ações e obtêm, em dez minutos, lucros de 60% sobre o capital aplicado. Mas seu ganho é taxado em apenas 15%, como se estivessem investindo a longo prazo.

Os legisladores de Washington nos oferecem estes privilégios e muitos outros. Sentem-se compelidos a nos proteger, como se fôssemos araras azuis ou alguma outra espécia ameaçada de extinção. É bom ter amigos no topo da pirâmide.

No ano passado, minha contribuição fiscal – o imposto de renda que pago, mais os tributos sobre os salários pagos por mim e em meu nome – foi de US$ 6.938.744. Parece um monte de dinheiro. Mas foi apenas 17,4% dos meus rendimentos tributavéis. É um porcentual menor do que o pago por qualquer uma das outras vinte pessoas em nosso escritório. Suas cargas tributarias variam de 33% a 41% – uma média de 36% – sobre os rendimentos.

Se você produz dinheiro com dinheiro, como alguns dos meus amigos mega-ricos, sua porcentagem pode ser um pouco menor que a minha. Mas se você ganha dinheiro com trabalho, sua porcentagem será certamente superior à minha – provavelmente, muito maior.

Para entender o porquê, você precisa examinar as fontes de receita do governo. No ano passado cerca de 80% veio do imposto de renda pessoal e dos encargos sociais [impostos sobre salários]. Os mega-ricos pagam impostos de renda de 15% sobre a maior parte dos seus ganhos, mas não pagam praticamente nada em impostos sobre salários. A história é diferente para a classe média: normalmente, pagam uma alíquota de 15% a 25% de imposto de renda, e são atingidos com pesadas contribuições previdenciárias sobre o sálario.

Nos anos 1980 e 1990, as taxas de impostos para os ricos eram muito mais elevadas. Minha alíquota estava entre a média. Segundo uma teoria que algumas vezes ouço, eu deveria ter jogado e me recusado a investir, por causa das taxas elevadas de imposto sobre o ganhos de capital e dividendos.

Eu não recusei, nem outros. Trabalho com investidores há 60 anos. Ainda estou para ver alguém – mesmo quando o imposto sobre os ganhos de capital chegou a 39,9% entre 1976 e 1977 – amarelar diante de uma oportunidade de investimento por causa da taxa de impostos sobre o ganho potencial. As pessoas investem para ganhar dinheiro, e impostos elevados nunca os assustaram. E para aqueles que argumentam que as taxas elevadas ferem a criação de emprego, gostaria de observar que cerca de 40 milhões de empregos foram criados entre 1980 e 2000. Você sabe o que aconteceu desde então: menores impostos e a criação inferior de emprego ocupações.

Desde 1992, a I.R.S [Internal Revenue Service, agência fiscal norte-americana], compilou dados das declarações fiscais dos 400 norte-americanos classificados na faixa mais alta de maior renda. Em 1992, estes 400 mais ricos tiveram renda tributável conjunta de US$16,9 bilhões e pagaram impostos federais de 29,2% sobre esta quantia. Em 2008, a renda agregada dos 400 riquíssimos tinha aumentado para 90,9 bilhões – um enriquecimento de US$ 227,4 milhões, em média. Porém, a tributação média havia caído para 21,5%.

Estou me referindo apenas ao imposto de renda federal, mas você poder ter certeza de que qualquer imposto sobre rendimentos, para aqueles 400 é insignificante em relação à renda. Em 2088, 88 dos 400, não relataram ter auferido rendimentos relacionados a trabalho, embora todos eles declarem ganhos de capitais. Alguns da minha irmandade evitam o trabalho, mas todos gostam de investir (eu posso compreender isso).

Conheço bem muitos dos mega-ricos. Em geral, são pessoas muito decentes. Eles amam os Estados Unidos e apreciam a oportunidade que este país tem dado a eles. Muitos aderiram à Giving Pledge [filantropia], prometendo doar a maioria de sua riqueza para o bem comum. A maioria não se importaria de ter que pagar mais impostos, especialmente quando muitos de seus concidadãos estão realmente sofrendo.

Um comitê de doze membros do Congresso assumirá em breve a tarefa crucial de reorganizar as finanças de nosso país. Eles foram instruídos a elaborar um plano que reduz o déficit em pelo menos $ 1,5 trilhão, nos próximos 10 anos. É vital, entretanto, que alcancem muito mais do que isso. Os norte-americanos estão perdendo rapidamente a fé na capacidade do Congresso em lidar com os problemas ficais do nosso país. Apenas ações imediatas, reais e muito substanciais poderão impedir que a duvida se transforme em descrença. Esse sentimento pode ter consequências graves.

Um trabalho para os doze é dissipar algumas promessas futuras que mesmo uma América rica não pode cumprir. O Big Money tem que ser guardado aqui. Os 12 devem, então, voltar-se para a tributação das receitas. Eu deixaria inalterados os impostos que recaem sobre 99,7% dos contribuintes e manteria a redução de 2 pontos porcentuais nas contribuições do empregado para a Seguridade. Este corte ajuda os pobres e a classe média, que precisam de cada centavo que possam obter.

Mas para aqueles que ganham mais de 1 milhão de dólares anuais – eram 236.883 famílias, em 2009 – eu aumentaria imediatamente as alíquotas de imposto sobre a renda acima de $1 milhão, incluindo, é claro, os ganhos em dividendos e capital. E para aqueles que faturam acima de $10 milhões – foram 8.274, em 2009 – eu sugeriria um aumento adicional na taxa.

Eu e meus amigos já fomos mimados por tempo suficiente pelos amigos-dos-milionários no Congresso. É hora de nosso governo levar a sério a divisão do sacrifício.

*Warren E. Buffet é considerado um dos homens mais ricos do mundo (estava em terceiro lugar, na lista de 2010 da revista Forbes). Norte-americano, 80 anos, enriqueceu ao longo de décadas de investimentos em bolsas de valores e empresas que considerava desvalorizadas e promissoras. A Forbes avalia sua fortuna em 37 bilhões de dólares (equivalentes ao PIB do Uruguai ou do Amazonas). Em 2006, destinou 85% de sua herança a fundações filantrópicas.

fonte: outraspalavras.net

domingo, 14 de agosto de 2011

PSD DO SÉCULO 21: UM CAMINHO PARA A OPOSIÇÃO?



Por Cláudio André de Souza*

FHC, Serra e Aécio ainda não tiveram o êxito de "refundar" o PSDB, ainda menos uma oposição com densidade partidária ao terceiro governo capitaneado pelo PT. Não basta atuar aos gritos na tribuna parlamentar. Embora a oposição atue a contento nesse espaço, falta agregação de novos atores políticos na “rua” e na seara institucional. Não seria delírio pensar que a sobrevivência dos partidos de oposição esteja diretamente relacionada a capacidade de estabelecer alianças com partidos que estão atualmente na base do governo. Daí que a oposição no congresso precisa combinar-se com a capacidade pragmática de refazer alianças regionais que produzam força eleitoral a oposição para 2014.

Nesse sentido que com maior "virtú" que os partidários tucanos e democratas, Kassab e o seu PSD estão prestes a ratificar a fundação legal de mais um novo partido, delineada pela propensão em ser governo e aderir ao projeto do PT-PMDB. Mas, o partido é incipiente e não se pode reiterar com convicção que nasceu para estar alinhado aos petistas. O recrutamento de lideranças do PSD tem desidratado a oposição, sendo que não há certeza quanto ao alinhamento automático desses caciques que até 2010 estiveram no front de oposição radical ao PT, caso da ruralista e senadora Kátia Abreu.

Os interesses regionais podem falar mais alto e, nessa seara, o PSD pode imiscuir-se entre coligações com o governo e oposição. Como diz Kassab, projeto nacional só em 2018. Será? Uma questão tem sido relevante nesse processo: a criação do PSD caminha para o desenho de novos paradigmas a uma direita que necessita rever – por questão de sobrevivência -  seus posicionamentos, uma vez que o cenário político tem reafirmado os limites e fracassos do neoliberalismo, ao passo da assunção de forças de centro-esquerda que recolocam o bem-estar social e a capacidade do Estado em prover tal projeto. A superação do neoliberalismo tornou-se uma etapa sine qua non para o acúmulo de forças da esquerda rumo a um projeto socialista, segundo suas estratégias programáticas. Desse modo que, a criação do PSD pode, talvez, sinalizar um novo posicionamento da direita em relação a capacidade de dialogar com interesses que tem credenciado as urnas e as bandeiras tradicionais da esquerda. Daí não causar espanto o Democratas apresentar recentemente em seus spots publicitários na TV bandeiras e questões ancoradas nos programas de governo petistas.

A criação do PSD, para além da díade governo-oposição pode gerar uma sinergia capaz de reposicionar em maior grau a direita brasileira, e de fato, os partidos que hoje se veem em oposição ao governo. Dada a maior afinidade programática dos que estão a cerrar as fileiras do partido, não é dificil prever que em momentos distintos o partido estará próximo do PSDB e do DEM, mas a flertar com o projeto do PT. A indefinição de Kassab faz sentido em tempos de governabilidade e conciliação. O PSD abre flanco para a redefinição da oposição atual, atrasada e suplantada pelos encantos do neoliberalismo. Talvez, á guisa da consolidação da democracia brasileira pode contribuir nesse momento em maior grau na oposição que sendo mais um na coalizão petista.

*Cláudio André de Souza, cientista politico, professor do IFBA, mestrando em ciências sociais pela UFBA e editor do Pílulas de Binóculo (clandresouza@gmail.com).

terça-feira, 5 de julho de 2011

A OPOSIÇÃO DE FHC



Por Cláudio André de Souza*

A política definitivamente não é um objeto mórbido. No início do ano ao se renovar os mandatos legislativos a imprensa e seus analistas políticos, de um modo geral, calculavam que o Senador Aécio Neves (PSDB) se tornaria a estrela maior da oposição, quiça, do país. Sem “estrela” a brilhar em igual monta (José Serra saiu derrotado das urnas e sem mandato para dar visibilidade e sobrevida a uma candidatura futura), o caminho se mostrava aberto ao senador mineiro, reconhecido como pré-candidato a presidente em 2014 até pelo mundo mineral, dimensão “reconhecida” pelo jornalista Mino Carta. Alguns governistas como o pernambucano Eduardo Campos (PSB) chegara a propor que a força de Aécio deveria ser levada em consideração pelo governo, sendo ele um nome que poderia ser pensado para a sucessão de José Sarney na presidência do Senado (leia-se com o apoio da base governista).

Nos holofotes mais por analistas da imprensa que por “mérito”, Aécio travou nos primeiros meses do ano uma batalha interna para destravar o PSDB e sua máquina partidária, controlada por botões paulistas. Ganhou. Mas sem exposição pública, o que delineou ser a vitória pessoal ante a primazia de ideias e concepções. Fez um trabalho de bastidores. Deles saiu em seu primeiro discurso no senado, ressaltando as mesmas bases que a campanha de Serra havia montado nas eleições como crítica aos governos do PT: incompetência e falta de ética. Também referiu-se a oposição , mas, ao mesmo tempo, valorizando o diálogo com o governo, a saber, talvez, que dele e só dele pode extrair forças contundentes para uma candidatura potencial em 2014, se não quiser morrer na praia.

O balanço da atuação dos oposicionistas no primeiro semestre rende-se a institucionalidade formal, sendo incapaz de articular uma agenda de peso colada às demandas da população, forjada a um projeto político e eleitoral. Em um cenário que não possui agenda e atuação parlamentar de destaque, a oposição viu-se sem força para pautar a sociedade civil. Obteve êxito em criar rusgas no processo legislativo, obstruindo pautas, esvaziando plenário, comissões, etc. Acabou sendo atropelada pelos fatos enquanto esteve seduzida pelas primeiras iniciativas de Dilma relacionadas ao controle das contas do governo e a um aceno de respeito e civilidade com os adversários.

Por ordem da virtú, seis meses foram suficientes para o ex-presidente Fernando Henrique desbancar Serra e o Aécio: foi personagem central de um filme, lançou um manifesto "teórico-analítico" por uma nova agenda da oposição, manteve considerável espaço na direção do PSDB e tem dialogado com o governo interesses/opiniões com cobertura da mídia, etc.

Sem mandato e pretensões por ora verbalizadas, FHC tem recebido grandes holofotes, como dos seus 80 anos com direito, inclusive, a mensagem da presidente em relação a sua contribuição à política e ao país. Enquanto a oposição não constrói um movimento político contundente, o governo petista apresenta: a) erros e problemas na coordenação política, inclusive, na relação com o legislativo; b) processo confuso de montagem da máquina administrativa com nomeações; c) agenda de governo sem formatação (reforma política, projetos de lei, sigilo eterno, etc.;) d) conflitos de posições no governo com uma coordenação institucional enfraquecida pela queda de Antonio Palocci.

Se Aécio depender da oposição "realmente existente" poderá sair ainda mais enfraquecido do senado para a disputa eleitoral. Ainda mais por que o legislativo é um das instituições de maior desconfiança e reprovação por parte dos cidadãos. O futuro do senador mineiro está a conformar-se na capacidade do Governo Dilma representar os interesses de coalizão, polarizados entre forças conservadoras e progressistas instaladas no seio do governo. O saldo dessa relação estará relacionada a capacidade da oposição em representar os anseios da população, atualmente preocupada em consolidar as bases do desenvolvimento social e econômico instados nos dois governos de Lula.

Nesse cenário, apesar de incipiente, podemos apontar, sem embargo, FHC como a principal liderança da oposição. Não que ele venha a ser candidato em 2014, embora as vezes vacile em transparecer este desejo. A falta de uma oposição forte tem elevado a sua figura, renascida pelo próprio governo, que parece ter dificuldades em coordenar o projeto iniciado sob a gestão de Lula. Falta ao Governo Dilma motivos e habilidades para apresentar o que seu governo deseja, enquanto sobra amarras à continuidade (de nomeações, agenda, projetos, interesses, estilos, etc.) e mediocridade do que tem sido justificado até aqui como coalizão. De uma certa maneira, a inexistência de uma agenda de governo (que não se resume à copa do mundo) prende o palácio a conflitos de varejo que ganham relevância ao sabor das conveniências extemporâneas. Não é a toa que a presidente tem tomado decisões e recuado constantemente. Essa estratégia de "republicanizar" as relações com o PSDB exprime a redoma que o governo não consegue sair pelos princípios que o tem norteado. O terceiro governo do PT e demais partidos históricos corre riscos caso não refunde uma agenda de governo dada sob a estabilidade de uma concertação partidária, o que pode, decerto, revelar ainda mais FHC como liderança virtual da oposição.

*Cláudio André de Souza, cientista politico, professor do IFBA, mestrando em ciências sociais pela UFBA e editor do Pílulas de Binóculo (clandresouza@gmail.com).

quarta-feira, 11 de maio de 2011

UMA OUTRA OPOSIÇÃO



Por Cláudio André de Souza*

Os últimos lances da oposição DEM-PSDB dão sinais da dificuldade em articular um programa político que represente vigor ideológico e capacidade exitosa de dialogar com o eleitorado brasileiro. As mudanças sócio-econômicas coordenadas por um governo promove novos valores e interesses nos cidadãos comuns. Com o crescimento da economia e a capacidade do governo de gerar mais expectativas, a partir, sobretudo, das políticas sociais mais amplas, os cidadãos comuns estão mais “exigentes”. Assim, o governo corresponde a maiores responsabilidades compartilhadas na gestão de um “bem-estar”. Isso leva a uma politização da sociedade ao passo que esta sabe a quem cobrar, no caso de um fracasso nas expectativas e no “nível de vida”. O neoliberalismo foi expert em por em jogo mais atores na responsabilização de direitos e políticas públicas, em destaque o mercado. Em geral, o neoliberalismo “desgoverna” a sociedade, a partir do desmonte do Estado.

A criação do PSD até aqui capitaneada por figuras tarimbadas da oposição, em sua grande maioria, tem concentrado esforços em dialogar a favor de um habitat no entorno do governo. Mas não sob a insignia de cargos e barganhas de recursos, comum no estabelecimento de uma coalizão no inicio de cada governo. O PSD tem dado sinais de aproximação do “espírito” da coalizão vitoriosa nas urnas nas últimas três eleições. Daí os impasses traduzidos no discurso do Prefeito de São Paulo, a definir que o seu partido não é de “direira, centro, ou esquerda”. Mas o que será afinal?

O êxito eleitoral do projeto petista resultou nas últimas eleições da habilidade em atrair forças partidárias com trajetória muito mais próxima do DEM (ex-PFL) e o PSDB. Estes setores estão a gravitar no governo, mas com agendas consideráveis de dissenso, como é o caso do código florestal, em processo de votação. Ou em pautas polêmicas, como a criminalização da homofobia e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. 

Como produto da governabilidade, não será surpresa se tivermos uma oposição de dentro do governo mais eficaz e produtiva que a “de fora”, envolvida nas concertações de poder e atropelada desde já pelas eleições de 2012 sem definir-se peremptoriamente de que lado está. 

O melhor à oposição, talvez, seria uma refundação sob o jugo de um grande ciclo de debates que envolva a construção de um programa. No entanto, parece que o pragmatismo está a prevalecer sobre uma agenda de fusão e alianças para as eleições de 2014. 

Enquanto isso, as “oposições de dentro” prevalecem tensionando a coalização governista. Se o DEM-PSDB continuarem a concentrar energias em favas contadas, podem assistir o PSD se estabelecer como um partido governista ou de oposição, mas sem o radicalismo comum aos tucanos, que atrairam nas ultimas eleições uma parcela conservadora de direita do eleitorado, incomum, sobretudo, aos governos de FHC, última experiencia exitosa dos tucanos e democratas. Decerto, o futuro da oposição está confiada a sua capacidade de construir um novo caminho. Afinal, o tempo passa.

*Cláudio André de Souza, cientista politico, professor do IFBA, mestrando em ciências sociais pela UFBA e editor do Pílulas de Binóculo (clandresouza@gmail.com).

domingo, 24 de abril de 2011



A realidade de um mundo competitivo passa pela degradação humana empregada no mundo do trabalho. Matéria interessante da Folha.







São Paulo, domingo, 24 de abril de 2011 




Na China, iPad sai de complexo semimilitar

Funcionários da maior unidade da Foxconn relatam broncas humilhantes, falta de privacidade e longas horas extras

Empresa que planeja megainvestimento no Brasil instalou grades em janelas depois de uma onda de suicídios 

FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL A SHENZHEN (CHINA) 

Ya li -pressão, em mandarim- é a palavra mais repetida por trabalhadores e ex-trabalhadores para descrever os dois complexos da Foxconn em Shenzhen, por onde circulam diariamente cerca de 400 mil funcionários distribuídos nas linhas de produção de iPhone, iPad e outros produtos eletrônicos.
Sem a autorização para entrar, a reportagem da Folha circulou por dois dias pelos arredores da maior fábrica da Foxconn no mundo, aberta em 1996 no distrito de Bao An, periferia de Shenzhen.
Em escala, o complexo é o exemplo mais próximo da "cidade do futuro" para 100 mil funcionários que a empresa estuda construir no Brasil, segundo anúncio feito na recente visita da presidente Dilma Rousseff à China.
Os relatos, porém, não soam nada modernos: cobranças dos chefes por meio de humilhantes broncas públicas, longas horas extras, falta de privacidade e de lazer nos dormitórios e baixos salários são parte da rotina.
Um quarto pode acomodar até oito pessoas. A divisão dos edifícios é por gênero, e visitas estão proibidas.
"A organização é semimilitar", conta o engenheiro de computação Ri Qian (os nomes usados nesta reportagem são fictícios), 24, contatado pela reportagem por meio de uma comunidade on-line de funcionários da Foxconn. "O que importa é qualidade, velocidade, eficiência e flexibilidade."
Há quatro anos na Foxconn, Ri, 25, trabalha dez horas diárias, seis dias por semana, em troca de um salário de R$ 1.083 e seguro-saúde. Para economizar, vive nos dormitórios, onde divide o quarto com um colega. Na Apple, um profissional com a mesma formação recebe, em média, R$ 13 mil mensais.

GRADES NAS JANELAS"Nós produzimos os eletrônicos mais luxuosos, mas não os consumimos", diz Ri, em conversa num café da cidade. Ele quer comprar um iPad numa futura promoção da Foxconn para funcionários, com desconto de 12%.
A seu lado, o também engenheiro Liu Hsieh, 26, diz que os que mais sofrem com a pressão são os operários mais jovens, menos educados e longe da família. Os 14 trabalhadores que se mataram em 2010, provocando críticas contra a empresa, tinham esse perfil, diz Liu.
A onda de suicídios fez a Foxconn instalar grades nas janelas e redes sob os dormitórios para evitar mais mortes e dar aumentos de até 60% aos operários -o salário inicial hoje é de R$ 433.
A empresa de origem taiwanesa também está transferindo parte de sua produção para províncias com mão de obra mais barata. Até 200 mil empregos devem mudar de lugar nos próximos anos.
Shenzhen talvez seja o maior exemplo do milagre chinês das últimas décadas. A região se dedicava à pesca e tinha só 300 mil habitantes em 1980, quando o líder comunista Deng Xiaoping criou ali a primeira zona franca do país, no começo da transição ao capitalismo.
Hoje com 13 milhões de habitantes, Shenzhen tem o quarto maior aeroporto do país, Bolsa, metrô (22 km em operação e 99 km em construção) e dezenas de empresas de alta tecnologia, entre as quais Huawei, IBM e ZTE.

sábado, 2 de abril de 2011

São Paulo, sábado, 02 de abril de 2011 


OPINIÃO CONTRA

Fechar a lista é cassar o direito dos eleitores de fazer escolhas

FABIANO SANTOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

É aconselhável não aprovar a mudança do atual sistema de lista aberta para o de lista fechada por dois motivos fundamentais.
Primeiro, imaginar que um sistema partidário se fortalece na medida em que mais poder é transferido para seus dirigentes ou para as instâncias decisórias coletivas exclusivas aos filiados significa tomar o efeito pela causa.
A lista fechada deve ser a culminância de um processo lento e contínuo de enraizamento dos partidos aos olhos do eleitor.
Ela só faz sentido quando, aos olhes deste, é indiferente que determinado político, e não outro, seja dono de uma cadeira, pois a instância coletiva, chamada partido, é suficiente para lhe prover as informações necessárias para a decisão do voto.
Enquanto isso não for verdade, é fundamental que ao votante seja dado o direito de escolher seus representantes, até mesmo para que os partidos se informem a respeito do perfil político, ideológico, demográfico etc, que suas bases eleitorais desejam dar às bancadas.
Assim sendo, qualquer forma de lista fechada nunca deveria ser considerada como possível causa do fortalecimento dos partidos, antes pelo contrário, podendo implicar em um dramático afastamento dos representantes das expectativas e demandas da população.
É importante que o PT perceba, neste sentido, que o que vale para um partido não necessariamente é válido para o sistema em seu conjunto. Segundo, não há como tergiversar a respeito da transferência de soberania que a mudança encerra.
Fechar a lista é cassar um direito -o direito dos eleitores de escolher, além do partido de sua preferência, também o candidato, que aos seus próprios olhos, mais se aproxima do seu ideal de representante.
Tal alteração, portanto, à luz de qualquer teoria democrática digna da alcunha, somente deveria ser efetuada por iniciativa dos eleitores.
Em suma, caso o Congresso aprove a lista fechada, o estará fazendo em nome de doutrina estranha aos princípios elementares da soberania popular.

FABIANO SANTOS, cientista político, professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp/Uerj).

quinta-feira, 10 de março de 2011

Salvador: a cidade das desigualdades

INTRODUÇÃO

Uma comemoração é sempre um bom pretexto para se fazer uma reflexão sobre o que se comemora ou do sentido da comemoração. 450 anos são um marco na existência de uma cidade, um número cheio. Quando Salvador completou 437 anos, escrevi um ensaio intitulado “Salvador: província e metrópole”; àquela época o país começava a desfazer-se do autoritarismo militar que o havia dominado por pouco mais de 20 anos, desde, portanto, o fatídico 1964 até 1986. O particular da abertura política, que possibilitaria a construção contínua da democracia, era o sentimento de que a cidade poderia ser devolvida aos seus habitantes, se é que alguma vez na história ela realmente os pertenceu. Aquele era um momento em que parcelas significativas da população manifestavam-se no sentido de seus interesses mais específicos, mas também cuidavam de reivindicar objetivos mais gerais, mais universais.

Aos 450 anos Salvador se constitui em uma metrópole moderna, nestes últimos anos, superando certas dificuldades que lhe eram tão comuns, a exemplo de sua própria manutenção básica: limpeza pública, saneamento. Iluminação, pavimentação de ruas, manutenção de praças e jardins, preservação do patrimônio público etc., em suma mantê-la como um condomínio bem administrado, provendo a seus habitantes os serviços urbanos básicos; em outros termos, fazendo a coisa mínima que deveria ser feita.

Salvador, provinciana não era apenas a cidade de intimidades de habitantes com seus lugares, a vivência particular desses lugares e pessoas que se conheciam pela proximidade da vizinhança, do bairrismo, o que levava à solidariedade e à intriga. O provincianismo estava, sobretudo, na legitimação institucionalizada da apropriação do público pelo privado, na dominação do campo político como negócio de família e de compadrio político; do exercer a vontade gerencial a partir de interesses particulares, tal como costumavam ser as formas de proceder de políticos em todas as esferas e instâncias do poder público, desde o rapa, na perseguição de ambulantes, aos vereadores, prefeitos, deputados e aos próprios governadores, nos acordos de interesses pessoais, grupais e partidários.

O poder, exercido em nome de uma “autoridade natural” derivada da posição funcional que, por exemplo, dava ao policial, civil ou militar, a garantia de impunidade quando violava os mais elementares direitos humanos dos cidadãos em agressões fúteis, mas também conferia a mesma legitimidade à impunidade em relação a violações contra interesses públicos de parte dos políticos, ou melhor, dos mandatários de cada momento.

O provincianismo se definia no privilégio do interesse particular sobre o universal, no pleno domínio da elite em relação à população como um todo. Este estado de coisas, de longa história, fez Salvador ser como é em sua forma urbana, mas não a moldou do mesmo jeito em sua forma cultural. São estes dois campos de reflexão que serão abordados neste ensaio sobre a Cidade de 450 anos.

DUAS CIDADES: BRASILEIRA E LUSITANA
Podemos fazer um corte – arbitrário, é verdade – na história dessa Cidade, também chamada de Bahia – que, como disse o historiador João José Reis (Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989), “tem a personalidade de um país” – tomando três momentos em sua longa duração: antes de Tomé de Souza, a cidade lusitana e a Salvador de hoje no contraponto província e metrópole.

São, como dissemos, cortes arbitrários, mas nele acreditamos encontrar alguns elementos fundamentais da baianidade, estado de espírito que faz de Salvador uma cidade sui generis, como uma nação, vista pelos de fora como um lugar hedônico, império da sensualidade, do lúdico e da preguiça: mão de todos os vícios e de todas as virtudes.

Salvador foi, desde a sua fundação, um lugar no mundo, um ponto de apoio para a globalização da modernidade. “Nós não nascemos em função do Brasil, nascemos para ser base, uma sustentação, um apoio, uma guarda, um reabastecimento, um estaleiro de todo o processo mercantilista internacional” (Cid Teixeira, entrevista 1996). Esse cosmopolitismo é, portanto, de origem, mas, antes da cidade ser fundada, a civilização pré-urbana iniciada por Caramuru já desempenhava, ainda que de modo menos estruturado, esses contatos mercantis com navegantes aventureiros, corsários, piratas, contrabandistas, como se tornaram conhecidos pelos historiadores que tiveram como referência a ilegalidade desse comércio. Era essa época da luxúria, do encontro cultural do branco com o índio, da transposição da linha do Equador como fronteira entre o pecado e o mundo livre, onde tudo era recomeço ou reencontro com o paraíso perdido.

Nesses 48 anos de povoamento do sítio indígena na entrada da barra da baía de Todos os Santos, depois de ter passado algum tempo com os indígenas do Rio Vermelho, frente ao mar aberto, Diogo Álvares Correa, o Caramuru, se estabeleceu com os índios, constituiu família desposando uma índia e amancebou-se com outras, organizou as relações comerciais com negociantes de todas as nacionalidades que se interessavam por produtos da terra. Dessa relação comercial, sexual e social começa a gente brasileira a crescer em número, aculturada aos padrões indígenas, mas sem perder os elementos da cultura européia agora descontextualizada, convertida ao imediato da realidade local.

Na entrada da barra da baía, hoje bairro da Barra, foi erguida a Vila do Pereira, começo dessa nova civilização, anterior, portanto, à civilização lusitana transladada para a nova cidade, planejada para a defesa do patrimônio colonial português: as terras brasílicas e tudo que nela havia é o resultante da atividade econômica promissora que iria fazer do Recôncavo o maior produtor de açúcar por alguns séculos; contudo, antes disso. Outras mercadorias já rendiam frutos com a exploração das matas: madeira, bichos e gentes para exportação ao longo de todo litoral, até Porto Seguro, no Extremo Sul da Bahia.

A lógica da defesa e do porto levou à escolha do sítio em que a cidade planejada foi erguida, desde as portas de São Bentos às do Carmo, no alto do promontório, diante da baía de Todos os Santos. Fortaleza inexpugnável, em tese, mas que foi invadida duas vezes pelos holandeses, apesar de seus fortes localizados em pontos estratégicos.

Defesa, comércio e devoção eram os princípios dessa cidade, capital do Atlântico Sul, como a considera o historiador Cid Teixeira. Defesa e comércio são relacionados aos objetivos econômicos da exploração colonial; devoção, por seu lado, às condições de vida de um povo exilado de sua própria terra natal, voluntária e involuntariamente, para servir à causa da metrópole. Era um tempo de medo e de necessidade de salvação; uma época em que a morte caminhava entre os homens, abatia-os sem cessar em guerras, emboscadas, mas também com doenças individualizadas ou coletivas, pois era uma gente descuidada em higiene e alimentação e sem o resguardo de uma medicina que tivesse eficácia. Sífilis, escorbuto, sarampo, tifo, varíola, cólera morbus e tantas outras doenças menos atrozes que matavam adultos e crianças. Reza e água benta, temor e devoção, eram os remédios à disposição e no fundo, bem além, estava o inferno povoado por seres demoníacos à espera dos pecadores para o sofrimento eterno.

A cidade erguida imitava a metrópole. Os que aqui estavam eram mais realistas do que o rei. Salvador de Tomé de Souza não era, portanto, a da gente brasileira dos primeiros momentos, da periferia desse núcleo urbano oficial fechado em suas portas. A civilização soteropolitana é, assim, constituída de dois ramos: o brasileiro, formado pelo encontro dos primeiros bancos sediados e os índios e seus descendentes, ao longo desses longos 48 anos que antecedem à fundação da Cidade e, logo mais, pela interpretação social, sexual e cultural com os negros trazidos da África; o segundo ramo, o lusitano, a cidade oficial e seus ocupantes, funcionários, clérigos e militares no espaço da cidade-fortaleza.

È bom citar, novamente, o historiador em sua maneira de ver esta cidade implantada, que “nasce por uma imposição internacional” e que cumpre um papel bem definido e é este que a define: “a sua filosofia de implantação era tão moderna em 1549 para os interesses, para as exigências daquela época, quanto Brasília foi para os interesses e exigências de 1960” (Cid Teixeira, entrevista 1996).

Salvador nasce à margem dos acontecimentos civilizatórios que a antecedem e vai impor-se a eles, dando origem aos conflitos e acomodações que a farão, em definitivo, uma cidade das desigualdades, porém, de convergência. Era uma cidade voltada para o futuro, para a nova colônia, para o planejamento da expansão ocidental do Império Português na modernidade; era, pois, uma parte da história de Portugal no Novo Mundo, tal como era vista pelo pregador jesuíta padre Antônio Vieira:

Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu apetite, nem mais superior a toda capacidade, que na notícia dos tempos e sucessos futuros; isto é que oferece Portugal à Europa e ao Mundo esta nova e nunca ouvida história. As outras histórias contam as cousas passadas; esta promete dizer as que estão por vir; as outras trazem à memória aqueles sucessos públicos que viu o Mundo; esta intenta manifestar ao Mundo aqueles segredos ocultos e escuríssimos a que não chega penetrar o entendimento... (Antônio Vieira)

Salvador era, de algum modo, o futuro de Portugal e, por isso, não podia deixar de ser essencialmente portuguesa e a fazer aqui nos Trópicos uma simulação da corte, da fidalguia, uma cópia da metrópole na arquitetura e nas pompas, nos ritos sociais e religiosos.




REBELDE E ESPERANÇOSA
A cidade do futuro é também a cidade presente, que se faz cotidiana com a matéria do passado: essa é a razão da densidade cultural que impregna Salvador e a faz significativa, mesmo quando esse significado não é decifrado e se transforma em mistério. Não se está em Salvador como em outro lugar, nela as pessoas estão sempre esperando que algo aconteça, e isto talvez seja a promessa de dizer “as cousas que estão por vir”. Um encontro inusitado, alguma coisa que dê uma reviravolta na vida, ou, em última instância, a salvação.

Salvador vai ser uma civilização “do reino” por séculos, embora não tão pura ou tão simulada como no século XVI, até o século XIX, na tumultuada década de 20, cujo marco foi a Independência comemorada em dois de julho de 1823, depois de uma longa e sangrenta guerra. Libertada politicamente de Portugal, a Bahia, o último reduto português, era dominada por portugueses no pequeno e grande comércio, na administração pública, nos principais negócios e empreendimentos. A Independência não mudou a vida do povo brasileiro e isso gerou descontentamento e revolta, levando hordas populares a caçarem e matarem “marotos”, apelido dado aos portugueses, por motivos os mais fúteis. Era a cidade desesperada, vetada à visão da promessa de futuro, estagnada socialmente numa realidade intolerável.

Salvador vai ser a cidade da esperança, não mais passivamente aguardando o acontecer, mas gerando revoltas como as do passado, desde a Conjuração dos Alfaiates, em 1798, em que prisioneiros foram enforcados e decapitados, em seguida expostas as partes amputadas de seus corpos nas ruas centrais da Cidade até o apodrecimento total de suas carnes na Praça da Piedade e ruas adjacentes, uma das quais se chama Rua da Forca. Veio a Rebelião dos Malês, em 1835; a tentativa de Independência de 1837, a Sabinada; conflitos e castigos. É a cidade à procura do futuro, querendo antecipá-lo e torná-lo contemporâneo dos desejos de seu povo.

Ao completar 450 anos, a cidade do Salvador se mostra a uma grande parte de seus habitantes como um lugar difícil, feio e até mesmo cruel. Uma outra face, entretanto, a que se olha no espelho, é simplesmente narcísica, ou, de modo mais apropriado, "é de Oxum", com toda a vaidade do orixá.

Essa cidade de múltiplas identidades se projeta nacional e internacionalmente, como a “terra da felicidade”, estereótipo criado a partir de uma música de Ary Barroso, mas também como da sensualidade, da faceirice, “da morena mais frajola da Bahia” etc., de tantas outras letras de música. Uma Salvador mesquinha, feia e dura em relação a como vive uma parcela muito grande de sua população, ocupando assentamentos urbanos arranjados pelo esforço coletivo de ocupar terras ociosas e nelas erguerem bairros inteiros, em pouquíssimo tempo, antes que a repressão institucional se desse. Essas inva­sões são, inclusive, as novas denominações da urbanização da pobreza que antes eram chamadas de favela, Agora, a pobreza é vista como algo que contraria os aspectos legais da ocupação da terra e é, assim, primeiramente qualificada por este aspecto.

Se fazemos a pergunta, tal como fez Philip Johnson (A humanização do meio ambiente. São Paulo: Cultrix, 1972), “porque mantemos feias e desumanas as nossas cidades”?, a resposta certamente não estará em nenhum desvio comportamental nem numa tendência à perversão, mas tão somente no modo de produção capitalista, particularmente na sua expressão brasileira e baiana de fazer a cidade no seu dia a dia.

A bela cidade do Salvador, uma das cidades mais carismáticas do país, é também uma das mais cruéis, pelo menos para um grande número de moradores que sofrem as mais duras privações e que se submetem a terríveis situações cotidianas. Não se trata aqui de procurar desmascarar a cidade bonita e feiticeira, exótica para os turistas e, de certa forma, até mesmo para os que aqui moram, dada a sua diversidade social e cultural, mas de fazer uma reflexão sobre o modo de ser de um povo que está em Salvador ou que a escolheu como o seu lugar de moradia para aqui realizar a sua vida, as coisas que animam a existência.

Para levar a efeito essa reflexão tomamos a sociabilidade soteropolitana com vistas a compreender como vive, cotidianamente, o povo da cidade, usando aí o conceito de povo muito próximo daquele Michelet, assim como a observação dos que vivem numa cidade, tal como ele recomenda:

Examinai bem essas turbas espirituosas e corrompidas de nossas grandes cidades, que tanto ocupam o observador, escutai o seu linguajar, seus gracejos não raro felizes, e descobrireis uma coisa que ninguém ainda notou, isto é, que essas pessoas, às vezes analfabetas, não dei­xam de ser, a sua maneira, espíritos bastante cultivados. As pessoas que vivem juntas, tocando-se sempre, desenvolvem-se ne­cessariamente ao simples contato, como que pelo efeito do calor na­tural. Elas se propiciam uma educação, má, se se quiser, mas educa­ção. Só a visão de uma grande cidade, onde sem nada querer apren­der alguém se instrui a todo instante, onde para se conhecer mil coisas novas basta caminhar na rua de olhos bem abertos, essa visão, essa cidade, sabei, é uma escola. Os que nela vivem não vivem de forma alguma uma existência instintiva e natural; são homens cultos, que bem ou mal observam e bem ou mal refletem. Acho-os frequente­mente muito sutis, e de uma sutileza perversa. Os efeitos de uma cultura refinada são neles bem visíveis (Jules Michelet. O povo. São Paulo: Martins Fontes, 1988)

Essa perspectiva de Michelet implica também numa metodologia muito es­pecial de percepção da cultura do povo ou, se quisermos, da cultura popular, o que leva a outro tipo de dificuldade conceitual. No entanto, a direção é essa, ver e ouvir o povo em sua faina cotidiana, numa diversidade e multi­plicidade de interações sociais, em que cortes verticais se sucedem, mas que são cada vez menos intensos, pois as relações entre diferentes estratos dimi­nuem aceleradamente na medida em que as "classes sociais" tornam-se mais fechadas em seus compartimentos, que já não se interdependem tanto, a exemplo de quando se precisava do trabalhador do povo como criado domés­tico, como lavadeira, jardineiro, motorista etc, e até mesmo a figura do agregado pobre, o literalmente "criado" pela família rica.

Os distanciamentos sociais aumentam, em que pese o fato de um maior compartilhamento de espaços públicos (ruas, praças, avenidas e mercados), mas, mesmo assim, pode-se observar o quanto eles propiciam espaços pró­prios para evitar contatos mais estreitos e constrangedores. Os shoppings centers são estratificados em seus diversos lugares, de modo a selecionar o público a partir de interesses bem definidos, No pavimento térreo, por exem­plo, estão as grandes lojas de departamento, agências de bancos e alguns serviços indistintos de que se utilizam todos. São estes espaços populares num conjunto que oferecem uma qualidade de recepção elevada e que se apresenta para um povo com um padrão de conforto que esse povo jamais poderia desfrutar por seus próprios meios; contudo, os pavimentos superiores, constituídos de lojas e boutiques de artigos sofisticados, cinemas e praças de alimentação, vão filtrando gente, separando o povão dos estratos médios e deixando esses lugares para os efetivamente bem aquinhoados na vida. Parece ser uma separação natural, que a própria pessoa faz ou sente ao medir quais são as suas possibilidades de ultrapassar as sutis barreiras dos espaços, dos preços, dos estilos, do modo de ser de cada lugar.

Cada vez mais os lugares são socialmente marcados para caber a diversidade dos tipos sociais, mesmo quando eles adquirem a característica de consumi­dores. Aí, mais do que nunca, estão divididos os bem sucedidos e os falhos, para usar aqui um conceito de Bauman, ao considerar o ideal de pureza social, que se expressa na pureza da raça e na pureza de classe:

No mundo pós-moderno de estilos e padrões de vida livremente con­correntes, há ainda um severo teste de pureza que se requer seja transposto por todo aquele que solicite ser ali admitido: tem de mos­trar-se capaz de ser seduzido pela infinita possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça inter­minável de cada vez mais intensas sensações e cada vez mais inebriante experiência. Nem todos podem passar nessa prova. Aqueles que não podem são a "sujeira" da pureza pós-moderna(Zygmunt Bauman. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998).

Essa separação social do “joio do trigo” é feita por uma série de mecanismos e processos que alimentam o racismo e outras formas de discriminação, desde as tradicionais e emblemáticas separações de elevadores sociais e de serviços, pelos quais a distinção já se faz entre moradores, visitantes e serviçais de variada natureza, até os estilos excludentes que personalizam luga­res e que requerem, com isso, identidades que nem todos podem portar ou assumir.

Assim, a cidade de todos é ao mesmo tempo a cidade de cada um, e isso dentro das possibilidades mais concretas de consumo. Mesmo no Carnaval, muito equivocadamente considerado como espaço e momento democráticos, a visibilidade dos divisores sociais é tão nítida que só um espírito conturbado pela festa deixa de enxergar essas diferenças e os mecanismos e processos de discriminação e até mesmo de exclusão extrema, como no caso das cordas que cercam e protegem os blocos organizados do contato mais direto com o entorno social.

A cidade da separação é também a cidade dos cercos próprios, dos limites impostos pelos conflitos e tensões, especialmente no que concerne à segurança pessoal. A cidade de protetores eletrônicos, de seguranças e grades, e estas até mesmo para impedir que pessoas ao relento possam proteger-se nos recuos de prédios e marquises que oferecem anteparo contra a chuva e contra o frio. Grades descem à noite nos prédios comerciais do centro para fechar estes espaços e a imagem que se tem é a da agressiva cidade gradeada.

A cidade não só discrimina, mas exclui agressivamente, sacrificando, inclu­sive, a estética da arquitetura em nome dessa pureza que chega mesmo ao seu sentido mais banal de ver no outro o lixo humano em suas portas.

Salvador é, desde a sua origem, a cidade das desigualdades. “Triste Bahia! Ó quão dessemelhante ...” (Gregório de Matos. À cidade da Bahia) Hoje as desseme1hanças se expres­sam com grande nitidez nos pólos opostos da riqueza opulenta e da pobreza miserável; da cidade bonita e rica em espaços públicos bem equipados e da cidade feia, cuja urbanização se parece com a descrição feita por Fanon sobre a situação extrema da colonização, tal como o Brasil, e a Bahia em particular, foram no passado. O contraste entre o colonizador e o colonizado. Não é diferente a Salvador de hoje daquelas cidades africanas em que o confronto entre as desigualdades sociais constroem cidades também desiguais:

A cidade do colono é uma cidade saciada, indolente, cujo ventre está permanentemente repleto de boas coisas. A cidade do colono é uma cidade de brancos, de estrangeiros. A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade negra, a medina (cidade árabe ao lado da qual se erguem edificações para europeus), a reserva, é um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados. Aí se nasce não importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de que. .É um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapa­tos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade acoco­rada, uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade de negros, uma cidade de árabes (Frantz Fanon. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979).

A comparação é enfática, mas não é menos verdadeira. A Salvador do “miolo”, onde estão os conjuntos habitacionais que formam as Cajazeiras; a do Subúr­bio Ferroviário, onde estão desde pequenas comunidades tradicionais até as grandes invasões mais recentes (Bate Coração, Constituinte, Fazenda Coutos e tantas outras), mas também onde outrora milhares de pessoas viviam em palafitas sobre mangue e mar, num dos bairros mais famosos de Salvador, “Alagados”. Outros espaços que concentram milhares de pessoas: Liberdade, Mata Escura, Fazenda Grande, Sussuarana, Beiru (hoje Tancredo Neves), Malvinas (hoje Bairro da Paz) etc., são exemplos de lugares “colonizados” na cidade do Salvador.

URBANIZADA E DISCRIMINADORA
A sociedade contemporânea é pródiga em ler e traduzir as condições sociais através de números correlacionados em tabelas e gráficos, em indicadores de situações de vida. Este procedimento sintético camufla, e por vezes anula, a existência dos atores sociais em seus jogos cênicos, nos quais os destinos pessoais estão alinhados ao esforço cotidiano de toda uma coletividade, seja ela expressa no conjunto da cidade, seja na configuração de paisagens me­nores, bairros ou mesmo ruas.

As práticas sociais cotidianas passam despercebidas dessa leitura e dessa tradução que desconhecem os destinos pessoais, as subjetividades, e tomam como referenciais tão somente os dados que ligam essas pessoas ao conjunto organizado do que se poderia considerar como estrutura social. Assim, os níveis de renda, medidos pelo salário mínimo, diriam das condições de vida de uma população, ou o PIB a renda per capita, a riqueza de um país, Mas não estão presentes os sentimentos, os modos de ser, os gestos e as falas, a alma e o humor, as expressões da existência.

O urbanismo, por seu lado, pode ser visto como ideologia, ou seja, concep­ção de época em que a cidade é tratada a partir de determinados pressupos­tos. Há poucos anos, ainda na década de 1980, estávamos envolvidos na racionalidade funcional das cidades preparadas para receber os impactos da industrialização projetada em termos de complexos industriais, a exemplo do Centro Industrial de Aratu ou do Pólo Petroquímico de Camaçari, no entorno metropolitano; agora, Salvador se esmera para camuflar suas mazelas e ex­por suas belezas, culturais e naturais para o encantamento de turistas, pois o turismo e a indústria cultural são as ênfases desse fim de século.
Na verdade, é bom que se ressalte, o planejamento sempre atuou como corretor de problemas, como solucionador de conflitos, sempre na direção de eliminar as tensões afastando os elementos opositores. Assim, os pobres que estavam no caminho da modernização foram retirados, seja através de polí­ticas habitacionais dirigidas para a ocupação periférica e interiorizada (as Cajazeiras, por exemplo), ou deixar que as soluções de moradia viessem no jogo de forças sociais subalternas na ocupação, pela via de invasões, de solos acidentados próximos a áreas urbanizadas de bairros populares, como são os inúmeros casos de invasões no Subúrbio Ferroviário e no Miolo de Salvador.


Criado o problema, portanto, a municipalidade, ou mesmo o governo estadual, se propõe a “urbanizar a invasão”, implementando algumas obras de infra-estrutura ou atendendo à população com alguns - e quase sempre precários - serviços públicos, através de programas, como o que está em curso e que se chama eufemisticamente “Viver Melhor”. São casas pequenas, feias e frágeis, tão precárias que muitas delas se dissolveram com as últimas chuvas, outras tantas foram levadas por terrenos movediços, rachando as suas paredes e ameaçando seus moradores.


A dimensão do planejamento, contudo, desaparece. O mais grave, entretanto, é a perda de princípios que deveriam orientar o urbanismo, na apenas a partir da razão instrumental, o lado pragmático de fazer a cidade servir, cada vez melhor, aos que fazem dela suas bases produtiva e existencial, à revelia do conjunto maior da população.


O urbanismo que não incorpora os valores das lutas e conquistas sociais só pode ser visto como autoritário e discriminador. Os agentes que o praticam são os mesmos que dominam a sociedade em todas as suas dimensões: econômica, política, cultural e social. A população que não tem as condições de fazer o jogo do mercado é compelida a resolver suas necessidades de forma secundária, improvisadamente, nas mais duras condições de organização suas vidas: moradia, transporte, educação, saúde, segurança, conforto, insegurança, medo e esforços intensos para viver na cidade, para se comunicar com ela e através dela. Não é por acaso que está internalizada e automatizada nas pessoas a resposta que se dá à gentil pergunta quando pessoas se encontram: - “Como vai você”?. A resposta é peremptória – “Na luta!”. Para além de um hábito, essa expressão denota o sentido de dificuldade que as pessoas sentem no exercício cotidiano de vida.


A luta política pela democracia não é internalizada no urbanismo. Este continua pautado em critérios de funcionalidade e na dependência dos jogos dos agentes construtores da cidade legal, ou seja, os comerciantes, os industriais, os agentes imobiliários e os exploradores da industrial cultural e do turismo. Um exemplo claro é a reserva ecológica que o complexo hoteleiro tem em Ondina, por exemplo, privilégio absoluto sobre a paisagem e localização de seus equipamentos, Mas não é só essa evidência escandalosa, basta que se olhe para a orla marítima, toda ela, e se procure ver quem a ocupa; e agora o Parque Atlântico Plaza Show, montado no mais extenso e privilegiado terreno público da cidade, no recente e tradicional bairro da Boca do Rio.


Em lugar dos equipamentos comunitários da densa vizinhança e da composição estética com a praia e o mar, pesadas estruturas de shopping Center e serviços sofisticados como o Rock in Rio Café, complexo de dez salas luxuosas de cinema da Paramount, entre outros. Não são pescadores, nem pobres, nem mesmo remediados. Há muito que os pescadores foram retirados da proximidade do mar, no desmanche das invasões da orla. Desde este tempo de vigência da ideologia da modernização urbana que Salvador agride os mais pobres, afastando-os das “áreas nobres”, acomodando-os em guetos, como a recente memória das invasões do Cai Duro e do Tubo, na Pituba e Costa Azul, transferidas para o Arenoso, numa vergonhosa barganha entre Prefeitura e empresas imobiliárias.

O princípio democrático não é internalizado pelo urbanismo soteropolitano. Há sempre leis pontuais que satisfazem a ganância dos agentes imobiliários e outros que requerem usos vantajosos da cidade. O Pelourinho é outro bom exemplo, O povo foi expulso, comerciantes e empresários bem sucedidos em seus negócios foram convidados, com os incentivos de financiamento governamental os mais atraentes, a ocuparem o velho Centro Histórico, a explorarem com toda a avidez, sem nenhum respeito às tradições, aos rituais do povo, sequer à memória arquitetônica e social. Nesta área, da Praça da Sé ao Carmo, passando pelo Terreiro de Jesus, Maciel de Cima e Maciel de Baixo, Largo do Pelourinho, numa das descrições da Bahia de Jorge Amado, é que se produz a mais genuína cultura popular da Bahia; mas hoje toda essa região central está vazia dessa gente, do popular, da espontaneidade. O que há de gente do povo aí está a serviço do turismo em atividades programadas. Pode-se dizer que não se encontra nesse cenário da velha Bahia com nenhum personagem de Jorge Amado: Joões Pinguelinho, Pés-de-Vento, Vadinhos, Miguéis Arcanjos ...

Nenhuma democracia em relação ao povo em Salvador, mas o oposto, rígida hierarquização de seus espaços. Ampla aplicação das penas de exílio e ex­clusão. Ordenar a cidade! Desfavelizar festas de largo! Padronizar barracas! Fazer do Carnaval um grande negócio! Eis a nova onda, a ideologia administrativa deste tempo de barganha política para a manutenção absoluta do poder. Retirar ambulantes, acabar com a economia informal, impedir que os mais pobres tomem iniciativas e ocupem espaços estratégicos na cidade para o exercício de suas atividades, e tudo isso numa época de desemprego agudo, de dificuldades de sobrevivência.

Se for tomado o exemplo do carnaval vai-se poder visualizar com muita nitidez essa prática de exploração da cidade pelos agentes econômicos dominantes. A mais dura fiscalização em relação aos ambulantes e seus negócios de ocasião. A mais despudorada entrega do espaço urbano aos agentes econômicos da indústria cultural. A mais ostensiva reserva de espaço para as classes mais favorecidas usufruírem a festa com conforto, segurança e exclu­sividade social.

O povo e nem mesmo as categorias privilegiadas da sociedade têm acesso à administração municipal, no sentido de participação em discussões de pro­jetos polêmicos. A cidade serve ao poder, à manutenção do poder de grupos políticos e estes a servirem aos interesses econômicos de agentes sociais dominantes. Por todas essas razões Salvador está se amesquinhando, maltra­tando cada vez mais seu povo sofrido, e como já não se pode mais fazer do sofrimento uma virtude, Salvador submerge na violência, no desrespeito, na hostilidade, na indiferença, na malandragem de toda ordem. Os dados esta­tísticos oficiais de assaltos a ônibus urbanos são contundentes: em seis meses do ano de 1999 mais de 1.100 ocorrências; neste mesmo período, 113 assas­sinatos, a maioria absoluta deles envolvendo jovens nos bairros populares.

Já não se tem o cidadão de Salvador, a não ser aquele que recebe o gracioso título dado pela Câmara de Vereadores. O soteropolitano, o morador da Cidade, está desgraçadamente entregue às suas possibilidades pessoais, uma vez que, se não tem condições de apropriar-se da cidade, é obrigado a viver na Cidade apropriada pelos outros e obrigado a uma humilhante submissão à ordem cotidiana de dificuldades que transforma a vida em luta, a difícil luta para ser feliz de quando em vez.

Somos herdeiros da diferença, que é a nossa origem: o branco colonizador, índios e negros escravos; destes, os índios foram condenados à extinção e a memória que temos deles é a romântica simbolização da brasilidade quando da guerra da Independência da Bahia: o caboclo. Homenagem a um povo que já não existia, senão como remanescente decadente de um genocídio progra­mado - puro romantismo ingênuo. Os negros, sobreviventes da escravidão, em conflitos e negociações, preservaram uma herança cultural de riquíssima interpenetração cultural, mas que ressalta a tradição afro-brasileira e a toma a própria cultura da Bahia, da cidade do Salvador e do Recôncavo.

CONCLUSÃO
Esse lado irônico dessa longa história, essa luta homeopática para sobreviver e fazer aflorar os modos de ser de um povo submetido à mais extrema dominação. A cultura afro-brasileira infiltrou-se na alma de todos, mesmo daqueles que a repudiam e assim o fazem porque a reconhecem, porque ela era a própria intimidade da vida cotidiana, como bem analisou Gilberto Freyre. Essa cultura foi inconscientemente sugada com o leite da ama preta mamado pela criancinha branca; foi engolida com a comida preparada pelas negras da cozinha branca; estava nos chás que aplacavam dores e incômodos intestinais; na anestesia das dores dos seios, do parto; no acalanto, no fechar de corpos fragilizados, no afastamento de medos, mas também no medo da força dos poderes dos feiticeiros, dos pais e mães-de-santo que tanto sabiam do mundo e dos mistérios do sobrenatural. Essa cultura era transmitida como se transmite a própria vida, dos mais velhos aos mais novos, em ritos de aprendizado, de convivência, de formação existencial. Mas era também a cultura da maioria, dos negros e mulatos, predominantes na população de Salvador até os dias atuais, quase a totalidade de seu contingente demográfico.

É essa cultura a marca da Bahia. É essa cultura que alimenta a indústria cultural e que faz da Bahia um centro produtor de cultura. O reconhecimento dessa cultura é visível, pois estão os orixás a proteger o grande espaço aberto do Edifício dos Correios, no elegante bairro da Pituba; estão também sobre as águas do Dique do Tororó; são eles a própria mata e as cachoeiras do Parque São Bartolomeu; já não estão circunscritos aos terreiros de candom­blé e nem estes precisam mais viver na clandestinidade ou obrigados a pedir permissão à polícia para bater os seus tambores sagrados (até 1975, os candomblés eram obrigados a pedir permissão para bater; no passado, sobretudo nas décadas de 1930 e 190, foram constantemente perseguidos, violados pela polícia. Hoje os candomblés são respeitados e prestigiados, alguns de seus pais e mães-de-santo tornaram-se personalidades ilustres, oficialmente reconhecidas e de obrigatória visita de personagens também ilustres que visitam a cidade).

Essa cultura multifacetada produziu também o fenômeno novo no quadro da religiosidade brasileira: o candomblé e a umbanda. O primeiro, com pouco mais de cem anos, a segunda, dos anos 30 deste século, e se espalham e se legitimam no Brasil, na América Latina e adentram os Estados Unidos, com a tendência de tornarem-se universais. São lugares e ambientes de socialização, de uma sociabilidade específica de múltiplas dimensões do sagrado e do profano. Desses terreiros e centros essa cultura transborda para a vida cotidiana em aspectos também específicos, como um duplo que pode viver a dimensão do cotidiano quando deixa a dimensão do espetáculo, do rito, da festa.

Porém, Salvador é também lusitana, mas sobretudo americanizada em suas práticas mais comuns: meios de comunicação, em especial o telefone; shopping centers, automação bancária, SACs (serviços de atendimento ao cidadão), clínicas e hospitais, hotéis e modos de vestir e agir também copiam o padrão norte-americano; a difusão da língua inglesa, o turismo internaci­onal. Salvador, sem a mesma importância do passado, continua a ser um lugar no mundo, tal como diz o verso: “Europa, França e Bahia”.

Ao completar 450 Salvador é uma cidade coquete, não mais daquele coqueteria tradicional de cores e odores fortes, de músicas melancólicas, do romantismo nostálgico e trágico, mas também da alegria esfuziante, da sensualidade de seu samba de roda, das safadezas de gestos, palavras, comidas e bebidas. Não mais a cidade das sombras, de luzes pálidas, nem mesmo a da sensu­alidade desabusada das mulheres públicas, nem a dos boêmios. É hoje a cidade do espetáculo, dos gestos estruturados, da socialização organizada, dos pagodes, das bandas, dos blocos, dos afoxés, da Timbalada.

Cada pessoa é uma representação em si mesma desses elementos simbólicos que caracterizam Salvador, a baianidade. O ethos baiano, amparado na sedu­ção. Salvador é para ser vista e vive se representando. É simultaneamente um lugar para si e para os outros, é um dar-se permanente, como a vaidosa Oxum, sensual e sedutora, mas enérgica e personalista. Como Iemanjá, é a grande mãe negra, a África mítica que só existe aqui, terra dos africanos da diáspora, terra de seus descendentes, África sentimental, território da ancestralidade, lugar de convívio do povo com os seus deuses e eles com o seu povo.

Salvador é tempo condensado, é lugar de encontro para o mundo e uma promessa de tolerância para o convívio das diferenças. Mais do que tudo o que se vê e que se pode tocar, Salvador é cheiro, é balbucio, é movimento sutil a modificar todas as formas que se querem rígidas. A personalidade de Salvador é fortíssima, sua cultura digere as demais culturas que aqui chegam e seu tempero predomina. Lugar de diferenças, mas a cidade a quem o futuro é promessa não superou a intolerância do racismo étnico e social do autoritarismo baiano compenetrado.

A cidade tornou-se mais universal, para si mesma e para os outros, é lugar de turismo e produtora de cultura. Vive o conflito de preservar suas tradições e torna-se mercadoria para consumidores de pouca imaginação e cuidado; e, nesse movimento, vez por outra se descaracteriza para fazer o gosto do freguês, ou dança uma mesma dança e canta uma mesma cantiga até a exaustão; ou faz movimentos bruscos e recria, trazendo suas raízes poderosas de lokos imensos, poderosa força que gera inovação e, novamente, algo novo e diferente emerge. Mas, de todas essas invenções e criações, a mais importante é a do aprimoramento do processo civilizador, o da dimensão ética das relações sociais entre as diferenças culturais, de tantas frentes aber­tas de luta contra o provincianismo político e cultural institucionalizados.


A cidade do Salvador é a promessa de ser a da salvação das almas, mas precisa ser, antes disso, a cidade da existência das pessoas no curso da vida cotidiana. A cidade bonita precisa contagiar a cidade feia e desumana de tantos milhares de habitantes pobres. A cidade do Axé precisa cuidar mais de sua gente, não ser gentil apenas com quem é de fora, em rituais cerimo­niosos de bem receber, enquanto aos daqui ordena – “sirva-se, você é de casa”, sem brincar de cerimônia íntima, tão delicada, tão terna, de quem se dá com gosto. Salvador é ainda promessa em seus 450 anos e a sua história é, verdadeira­mente, a das “cousas que estão por vir” (por Gey Espinheira).

In: cadernos do CEAS (n.184 – nov/dez de 1999), revista do Centro de Estudos e Ação Social. 

quarta-feira, 9 de março de 2011

PARTIDO E SOCIEDADE



A América Latina assim como as principais democracias contemporâneas pelo mundo lidam nos dias atuais com um arraigado descrédito e desconfiança por parte dos cidadãos em relação à política e as organizações partidária. Ao passo que desconfiam das instituições políticas, ratificam a democracia enquanto melhor forma de governo, como demonstra as pesquisas recentes de opinião pública e de cultura política (cf. www.latinobarometro.org). Este desencanto não pode ser tratado como acessório de menor valia, no que concerne a avaliação dos sistemas políticos e o desempenho da democracia. Tais discussões, não podem perecer sob a égide do pragmatismo e do mero formalismo da política, traços comuns a um tempo social que resiste até os dias atuais.
Os partidos são entidades que capitalizam o poder político com vistas a conquista do poder estatal. Cumprem um papel educacional ao se basearem em interesses e valores e estão “vocacionados”, segundo o filósofo Norberto Bobbio utilizando a definição de Max Weber, a serem associações  que visam um fim deliberado seja ele “objetivo” ou “pessoal”. Para Karl Marx, são os partidos atores fundamentais nas sociedades capitalistas, seja para defender os interesses da classe dominante, como para organizar a luta anti-capitalista da classe trabalhadora, visando a conquista de poder. O partido, inclusive, visaria expandir a sua ação para as demais esferas da sociedade civil (movimentos sociais, sindicatos, associações, etc.), portanto, espaços extra-parlamentares.
O caráter associativo dos partidos tem lugar na definição do cientista político Maurice Durverger, sendo os partidos políticos canais da opinião pública e dos cidadãos, influenciando as decisões governamentais. De outra maneira, os partidos fazem parte do sistema de freios e contrapesos (ou das instituições intermediárias) que visam limitar o papel do Estado em relação ao do indivíduo. O partido cumpriria a função de ser o “intermediário” na relação entre eleito e eleitor. Daí as leis que imputam o conteúdo partidário do voto, mesmo quando damos ele a uma pessoa, estamos a referendar um partido ou um grupo, ou seja, as coligações.
Os partidos voltaram a agenda da política por diversos caminhos, todos eles, tortuosos quando tem-se como fim a democracia e uma melhora das instituições. Em primeiro plano, as discussões até aqui sobre a reforma política, em âmbito parlamentar, estiveram concentradas nas questões do sistema eleitoral, em especial, a competição do voto. Tais mudanças impactariam os partidos em cenários de concentração em grandes partidos ou fragmentação em médios e pequenos partidos, respectivamente aliados ao modo majoritário (“distritão”) e proporcional.
Em segundo lugar, tomou espaço na grande imprensa a possível construção de um novo partido amalgamado aos gabinetes e pensado para reagrupar políticos com mandato que desejam uma aproximação das hostes governistas. A fundação de uma nova agremiação não é posta por uma plataforma mais adensada de valores, opiniões e interesses, até por que até então, a vida do PDB não passa de um “mapeamento genético” embrionário, “manipulada” nos bastidores sem nenhuma afirmação categórica dos articuladores como o Prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (DEM). Os resultados eleitorais recentes dão conta que ser situação ou oposição é essencial na estruturação da competição partidária no Brasil, perdendo-se de vista a centralidade das posições ideológicas. Vide os membros do DEM cogitarem o ingresso no PSB. De fato, as discussões do PDB giram em torno destas posições, em detrimento da criação de um partido com base social e musculatura para além das eleições, caso do PT, ainda uma exceção em nosso espectro partidário.
Por último, um amplo leque de atores do sistema partidário influi em vitalidade de acordo com o volume de recursos oriundos do Estado. O Prefeito de Salvador, João Henrique, agonizava na sua primeira gestão (2005-2008) quando ainda era filiado ao PDT e tinha mais de quinze partidos em sua base aliada. A principal crise deu-se e 2007 com a aprovação do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) e a saída dos principais partidos que levou Jacques Wagner (PT) a conquista do governo estadual, em 2006. Foi prontamente socorrido pelo PMDB, que balizou a sua filiação em acordo com a base governista. A segunda crise deu-se pela negação do apoio destes partidos a reeleição do prefeito, ao lançar a candidatura do Deputado Walter Pinheiro (PT).
No inicio de 2011, o prefeito, que enfrenta uma série de dificuldades administrativas, sem explicitar sistematicamente os seus meandros, decide se filiar ao PP, que atualmente ocupa o espaço deixado pelo PMDB baiano na composição do governo estadual e federal. Decisão semelhante à escolha anterior: vincular os êxitos da sua administração a possibilidade de acessar recursos do Estado (obras, projetos e programas governamentais). Pragmaticamente, o prefeito dá mais um looping para ter sobrevida após deixar a cadeira em janeiro de 2013. A entrada no PP – partido que indicou o Ministro das Cidades, o Deputado Federal Mário Negromonte – não indica uma mudança de rumos no que tange a ausência de programas sistemáticos de governo, de projetos para a cidade. O PT, até então, partido de oposição, fechou um acordo com o prefeito rumo a ter o apoio dele no próximo ano. Por outro lado, compromete-se a apoiar a gestão do prefeito, até então, combatida radicalmente pela bancada de vereadores.
Os desafios e limitações aos partidos permanecem como uma questão a pesar na qualidade da democracia. Estamos diante de um cenário de partidos voltados para a maximização dos ganhos eleitorais, paralelo a permanência do descrédito e desconfiança da população com os políticos e a política de um modo geral. Falta aos partidos criatividade, projetos, vínculos, espaços de decisão e diálogo com os cidadãos comuns. Estamos diante de um cenário de desafios imanentes à política, sejamos eleitos ou eleitores. A principal agenda a se deter em uma iminente reforma política deve menos ao formato e da engenharia institucional das regras democráticas do que o seu “espírito”. Diante das coisas vangloriadas “do jeito que estão”, podemos pensar que pior pode ficar.

* Cláudio André de Souza, cientista político e professor. E-mail: claudioandre.cp@gmail.com

domingo, 30 de janeiro de 2011

AGENDA VAZIA DE POLÍTICA?

Em seu diagnóstico preciso acerca da modernidade política, a filósofa Hannah Arendt se recusa a conceber que a liberdade, a razão fundamental da política, possa encontrar um substituto no alívio proporcionado pela segurança contra a violência ou na felicidade compreendida como saciedade. A política, em sua visão, não pode subsumir-se na gestão do animal laborans, ou seja, das condições precípuas da nossa vida, ao buscar sustentar o “mero estar vivo” (sermos animais vivos). Daí gastarmos uma parcela considerável a consumir a nossa subsistência – comer, dormir, vestir-se, etc. -, o perigo reside no aumento de tais “necessidades”. Sem uma moderação, podemos fazer do ato de consumir, concatenado ao animal laborans que visa a abundância, a saciedade e o conforto como um fim em si mesmo. Seria esta a condição humana, para a filósofa? Não, pretensamente.
A política é uma condição humana fundamental. A grande política, aquela que a autora vem a conceber, tem o seu sentido fundado na liberdade, para além da vida biológica e da economia (reino privado das necessidades e tomadas agora na modernidade como parte interessada de governos). Ao contrário das coisas que damos a  carregar pelos shoppings, a política permite-se  essencial para a existência daquilo que pode me transcender, que me precedeu e que provavelmente não desaparecerá após o meu "fim": o mundo, dado pela liberdade dos homens ao compartilhar “ações”.
O reflexo da modernidade política, pequena ante a dedicação das sociedades pelo “mero estar vivo” (as propagandas de TV vendem sandálias a se bailar pelas nossas “almas”, pelos nossos sentimentos!), tem vez no esvaziamento que vive a Prefeitura de Salvador. Tal situação não é um dado apenas de caráter administrativo. Ao contrário é fruto das idéias, de um projeto que ali nunca houve. O Prefeito João Henrique emplacou na sua primeira administração o slogan de que o seu governo era “grande”, movido a “pequenas ações”. Ter projetos, utopias e fazer da política uma máquina grandiosa, capaz de se estabelecer uma narrativa como foi a democracia no século XX, exitosa frente ao socialismo real, tem sido um desafio para todos os atores políticos contemporâneos.
Falta agenda à gestão atual. Perde-se em detalhes superficiais, como a inauguração e mobilização midiática das ciclovias na cidade, trocas de lâmpadas, asfalto, etc. Temos mais quilometragem em ciclovias que em metrô. Estamos na contramão, decerto.
Vencer a pequenez da política soteropolitana não deverá ser resultado das cúpulas dos partidos e da elite econômica. Também não será construída em torno de candidaturas que trocam o debate franco com a sociedade pelo “time” de alguém em si. A sociedade civil tem a sua parcela de contribuição, pois, qual o projeto para Salvador: agenda de desafios, ação, prioridades, políticas sociais, etc. A situação que estamos vivenciando no transporte público é uma farsa que imiscui interesses privados sob o rótulo de interesse público. A cada ano o transporte público de Salvador piora em termos de qualidade e prestação dos serviços. Nossas taxas de desemprego superam a média regional e nacional.
Como propôs Arendt, pensar a política como elemento crucial da liberdade dos homens delega responsabilidades a nós humanos. Salvador está pagando caro por ser jogada para o canto, em não ter uma agenda de ações integradas a vencer desafios inerentes à política. Em se ter uma política vinculada a uma margem de interesses, valores e opiniões. Estamos vazios de agenda, do que é a política mesmo em Salvador? Reduzida pelas elites a ser uma cereja do bolo (governo estadual e federal)? Daí que a dinâmica dos partidos gire em torno de tais instituições. Assistimos a uma articulação da oposição ao prefeito feita nos gabinetes, visando atrair partidos e cabos eleitorais para o jogo sucessório de 2012. Aliás não é a toa, que os episódios que estamos a assistir tem vez após os resultados das ultimas eleições nas esferas estadual e federal. Passa ao largo de projetos, idéias, compromissos, debates, etc. Governo e oposição parecem convergir a cantilena da prefeitura ter problemas de “gestão”, de condução “técnica” e “fiscal”.
Diante do quadro assumido até aqui, o resultado das eleições de 2012 pode sair este ano na montagem do governo estadual e federal. Não vencerá uma agenda de bem-estar social, uma cultura política democrática, mas uma lógica que traduz o poder e suas prebendas em cinturões eleitorais de voto. Em um patamar diferenciado das articulações de gabinete, os movimentos sociais e demais atores da sociedade civil podem fazer a diferença ao problematizarem as questões da cidade, como a situação do transporte, reclame do movimento estudantil nas últimas semanas.

João Henrique esvaziou a Prefeitura do Salvador de uma agenda, logo, de um horizonte da política. A prefeitura deixou de ser um governo representativo para se tornar um clube de sócios (interesses privados, cargos, familismos, etc.). Da forma que conduz-se o jogo político, a oposição ensaia repetir a fracassada receita de JH ao deixar para os bastidores o resultado de 2012. Nem sempre quem vence é o melhor. Falta a situação e a oposição projetos e idéias vinculadas a grandes utopias, a Política de fato e valor. Pelo menos, tais assertivas não compõem o cenário de movimentações. Enquanto isso, a cidade respira um vazio de presente e futuro.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O LULISMO E O PETISMO





* Cláudio André de Souza

Ficamos à deriva em boa parte da grande imprensa de análises mais acuradas sobre política, que revelassem tendências que levem em consideração a cultura política, os interesses, as instituições, etc. Não que devamos esperar da mídia nativa e seus conglomerados uma pesquisa acadêmica, mas o mínimo de bom senso na análise dos atores políticos. Por que falamos disso?
Perdemos praticamente todo o ano de 2010 a acompanhar um debate superficial e sem dimensão real (de análise) do papel do PT e de Lula no processo eleitoral e do resultado nascido das urnas. Daí deriva algumas inconsistências de esboço que às vezes tem o aval de cientistas políticos e sociólogos acurados na prática “futurológica”.
A debater a situação política atual podemos tecer que: 1) O PT consolidou a sua guinada a estabelecer uma parceria estável ao lado de partidos de centro e direita. Isso não significa que tornou-se mais um destes "in natura", mas, inversamente, temos a assunção de um conflito programático em aberto no PT, uma vez que assumiu no governo Dilma pastas ligadas aos movimentos sociais e setores da sociedade civil, o que tornará a ação do PT no futuro governo um “teste à esquerda”, acerca do seu potencial em defender valores e interesses que circundam o partido desde a sua fundação no Colégio Sion, em 1980. 2) O PT traduz os impasses e desafios de uma esquerda pós-Berlim (na América latina, a chegada da esquerda aos governos centrais guardam uma similaridade de trajetória e agenda) que tendeu a concentrar as suas estratégias no êxito eleitoral (conquista de governos e cadeiras no parlamento) em peso semelhante a atenção de se fazer presentes em movimentos sociais, sindicatos, ONGs, associações, etc. É o PT, vide o resultado destas eleições que comprovam uma parcela razoável de candidatos eleitos com apoios dos grupos acima mencionados, a concertar uma representação política qua ainda expressa atores políticos organizados para além de um mandato concentrado na ação e voz dos parlamentares; 3) Devemos fomentar e ater a nossa atenção a uma questão: como irá ficar o debate interno do PT entre o real, desejável e necessário? Ou seja, tendo o partido uma série de “pontas” em sua estrela, digo as tendências e facções internas, como formatar-se-á o debate acerca de balanço do governo Lula e o que fazer e esperar no cenário do novo governo da presidente Dilma? Em outras palavras, como tende a ficar a energia interna do partido em não se acomodar sob os auspícios de um governo que não reflete as posições majoritárias do PT e de encarnar a lógica viciada no sistema partidário de ser governo como um fim último? 4) Pelas declarações proferidas até aqui, Lula estará longe de interpretar a figura de um “ex-presidente”, lugar do qual alguns tendem a pensar que o “tempo político” já passara. Há uma tendência da sua figura a partir de agora: a de se tornar um presidente não-eleito do PT, retomando a militância partidária, servindo de articulador e apoiador de candidaturas para as eleições de 2012. Decerto, tende a embarcar pelo Brasil, provando de um apoio e popularidade que poderá, em parte, estar imune a outrora cadeira que esteve nos últimos anos. O fortalecimento da sua figura em 2012 pode abrir flanco para um terceiro mandato, a depender da performance do governo Dilma, dentre outras questões; 5) Por último, o dilema político a que o PT encarna na atualidade foi problematizado há 21 anos pelo Jurista e Sociólogo Raymundo Faoro em entrevista a Mino Carta: se o PT entender que o tempo não é crucial, vai se beneficiar muito com isso. O tipo de proposta do PT não é a Presidência da República. O importante são os meios para, na Presidência da República promover aquelas reformas a que ele se propõe. Só a Presidência da República, desligada do programa, poderia até ser uma armadilha para o PT”. Ou seja, a proposta original do PT coincidia com o intuito de mudar uma cultura política perpassada por valores e práticas políticas, para, daí, alçar vôos que dessem qualidade a sua ação política. O maior desafio para o partido nos dias atuais é interpretar esta poderosa insígnia teórico-analítica. 
Em outras palavras, cabe ao partido ao chegar a dezenas de cadeiras parlamentares e governos executivos (re) pensar em que medida pode e deseja se reencontrar com as bandeiras, interesses e desejos comuns desde a sua fundação. Assim como a esquerda da América Latina, para o PT tais questões residem em um livro aberto.

* Professor e mestrando em ciências sociais da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: claudioandre.cp@gmail.com